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Academia Maranhense de Letras

Fundada em 10 de agosto de 1908

Notícia

Gonçalves Dias e a Independência do Brasil

As comemorações em torno do bicentenário de nascimento de Gonçalves Dias deveriam estar intimamente associadas à passagem do bicentenário da adesão do Maranhão à Independência do Brasil.

         Afinal, o mais importante poeta do Romantismo brasileiro foi gerado e nasceu sob o fragor das lutas que se travaram nos arredores de Caxias, a antiga Caxias das Aldeias Altas, último reduto de resistência portuguesa à emancipação do Brasil no Maranhão.

Pouco antes da capitulação das tropas comandadas pelo major português João José da Cunha Fidié, que se haviam acantonado no Morro das Tabocas com dez canhões e 700 homens, e da entrada triunfal na vila dos seis mil brasileiros que, durante cem dias, a mantiveram sob cerco intransponível, o comerciante português João Manuel Gonçalves Dias e sua amante grávida, a mestiça Vicência Mendes Ferreira, temendo represália dos independentes, fugiam para sítio Boa Vista, nas matas do Jatobá, a oitenta quilômetros de Caxias.

Apenas nove dias após a rendição de Caxias, Vicência, em cujas veias corria sangue indígena e africano, daria à luz, a 10 de agosto de 1823, aquele que haveria de ser aclamado como o poeta da nacionalidade e de eternizar em versos belíssimos os acontecimentos decisivos para o surgimento do novo país livre e soberano das Américas. 

Caxias foi, para aquele menino vindo ao mundo sob o espanto da guerra, levado em fuga pelo pai português e a mãe brasileira, que temiam os “algozes nacionalistas”, como José e Maria, no antigo Egito, os soldados de Herodes, o “Antimural do lusitano arrojo, último abrigo seu”. 

Imediatamente após a publicação dos Primeiros cantos, em 1847, no Rio de Janeiro, em edição pela qual pagou 900 mil réis do próprio bolso, o jovem batizado Antonio, aos 23 anos de idade, foi saudado em sua terra como primeiro grande poeta romântico brasileiro e o primeiro a elevar a um patamar de grandeza os valores da nova pátria.

Decorridos apenas dez meses da publicação desse livro, o escritor, historiador, jornalista e poeta Alexandre Herculano, verdadeiro semideus das letras portuguesas, publica, na Revista Universal Lisbonense, o artigo que consagraria definitivamente o poeta caxiense. 

Depois de lamentar a decadência da literatura do antigo reino colonial e de afirmar que no Brasil, “país de esperanças, cheio de vida e viço, há um ruído de lavor intimo que soa tristemente cá, nesta terra onde tudo acaba”, Herculano aponta como exemplo da verdadeira poesia nacional do Brasil dois trechos das “Poesias americanas: “O canto do guerreiro” e um fragmento do “Morro do Alecrim”. 

Ora, “Morro do Alecrim”, como o poeta resolveu batizar o Morro das Tabocas, em homenagem ao cabo de guerra João da Costa Alecrim, que, ao lado do baiano-maranhense Salvador Cardoso de Oliveira, enfrentou Fidié na Batalha do Jenipapo, perto de Campo Maior no Piauí – talvez a mais sangrenta batalha das lutas pela Independência no Brasil –  e depois ocupou o refúgio do mesmo Fidié em Caxias,  foi apenas uma das muitas composições com que saudou as lutas pela emancipação do Brasil no Maranhão e, especialmente, em sua Caxias natal. Uma delas, o poema “Ao aniversário da Independência do Maranhão”:

Terras do Maranhão – terras ditosas,

De galas, de primores revestida, 

Que o avaro Holandês tanto almejava;

A bela França cobiçou teus mimos,

E ufanas de se ver sobre os teus mares

As flores de três lírios – assumiram

Fulgor mais vivo – no teu céu brilhante!

Mas do tempo que foi que resta agora?

Memória apenas – recordar de males, 

Suave, quando o tempo os tem quebrado,

Agora resta amor ao pátrio solo,

Amor à liberdade – à Independência

Do Brasileiro Império em mundo novo!

Outro exemplo, o “Hino ao Dia 28 de julho”, escritor em Caxias em 1845, no qual canta o poeta:

Fomos servos – noutros tempos,

Curvados à prepotência;

De estrangeiros soberanos

Mendigamos a clemência.

Diziam que a liberdade 

Nos podia ser fatal

Como nas mãos de um menino

Buído e fino punhal.

Mas enfim lá do Ipiranga

Altivo grito soou:

Somos livres – longe o eco

– Somos livres – reboou.

Esse grito foi em todos

Um só braço, um só querer.

Voz de mil vozes acordes:

Independência ou morrer!

É importante destacar que, logo em seguida à capitulação das tropas portuguesas, os pais do menino Antonio, escondidos no sítio Boa Vista, retornaram com o filho para a mesma Rua do Cisco, em Caxias, onde moravam e tinham comércio. Ali, Gonçalves Dias viverá até os dez anos, quando é enviado para estudar em Lisboa. Ainda remoendo os tormentos da guerra da Independência, Caxias então mergulha em outra fase de luta, desta vez ainda mais selvagem e sangrenta, a Balaiada.

É, portanto, nesse caldo cultural revolucionário e emancipacionista que se formará o espírito daquele a quem nomes como Antonio Henrique Leal, Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira, alguns de seus principais biógrafos, além de críticos atuais, como Antonio Carlos Sechim, o consideram como o verdadeiro poeta nacional. Sechim chega a dizer que se a “Carta de Caminha” emitiu a nossa certidão de nascimento, a “Canção do Exílio “simboliza a nossa carteira de identidade”.

Gonçalves Dias cantou e deu voz ao índio, ao negro, exaltou a paisagem brasileira e ajudou a construir a identidade do seu país, consolidando, na poesia, a Independência da nação que viu nascer. Por unanimidade, é considerado o fundador da “literatura nacional”, literatura com a cara do Brasil, iniciada por um brasileiro nascido numa remota vila maranhense, simultaneamente à consolidação da Independência do seu país. 

Parece-nos, assim, inadmissível, sob todos os aspectos, celebrar o bicentenário do nascimento de Gonçalves Dias e ignorar os 200 anos da completa adesão do Maranhão à Independência do Brasil, acontecimentos simultâneos e indissociáveis, que honram a memória do poeta e a história da nação livre e soberana que ele ajudou a construir.