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Academia Maranhense de Letras

Fundada em 10 de agosto de 1908

Notícia

GONÇALVES DIAS E O IMPERADOR

Daniel Blume, Cadeira n. 15 da Academia Maranhense de Letras

Em um primeiro passar de olhos, o texto pode parecer estranho. Afinal, por que falar da relação entre Antônio Gonçalves Dias e Dom Pedro II? O que tem a ver um poeta romântico com um monarca sul-americano? Convém misturar governo imperial com literatura brasileira? São várias as premissas da mera visão do título como posto. Contudo, outros estranhamentos talvez eclodam no decorrer dos fatos curiosos aqui expostos e algumas de suas possíveis interpretações.

Será que, realmente, algum dia, o poeta privou com o imperador? Não seria este um encontro improvável, haja vista a estratificação social existente no país, especialmente há dois séculos, num ambiente escravocrata? Havia, então, meritocracia no Brasil? Como um poeta mestiço da província teria acesso a palácio? E, se positiva a premissa, haveria interesse de parte a parte? O que poderia oferecer Gonçalves Dias ao império? Por sua vez, o que poderia oferecer Pedro II à poesia gonçalvina?

Antes de um regresso ao infinito de porquês, voltemos ao vertente artigo, um texto que não tem pretensões científicas ou academicistas, um texto que pretende mais perguntar do que responder. Eis um artigo que pretende, singela e puramente, acender um fósforo na gruta das relações — pouco exploradas pelos biógrafos — entre o poeta Gonçalves Dias e o imperador Pedro II. Da mesma forma que se pesquisa, por exemplo, acerca da amizade curiosa entre os gênios Albert Einstein e Charlie Chaplin, em cuja casa, em Vevey na Suíça, funciona um museu, no qual há um banheiro de espelhos dedicado à amizade entre artista e cientista.

Ao fim e ao cabo, este texto faz as vezes de um cômodo nos castelos biográficos do poeta e do imperador. Com mais perguntas do que respostas, almeja que os próprios leitores, no corrente Século XXI, concluam algumas daquelas questões que puxam dúvidas acerca destas duas personalidades históricas da mesma geração. E que venham os fatos.

O primeiro poema de Antônio Gonçalves Dias tornado público restou por ele declamado em Portugal nas comemorações da aclamação de Dom Pedro II como imperador constitucional brasileiro. Respectivamente, tinham 17 e 15 anos de idade. Então, nenhuma destas duas personalidades da história imaginava que se tornariam amigos.

A festividade aconteceu em 3 de maio de 1841, no período em que o poeta maranhense estudava, com dificuldades financeiras, na Universidade de Coimbra. De lá, exclamou o brasileiro “Peito que, há pouco frio, agora pulsa/Fogoso, e se dilata, qual o incêndio”.

Tais versos estão publicados no folhetim coimbrense “O Dia”. Não foram incluídos nos livros do poeta, porém marcam dois lançamentos: o do alvo e comprido Dom Pedro II como imperador, o mais longevo governante do Brasil; e o do moreno e baixinho Gonçalves Dias como poeta, o autor de clássicos como “Canção do Exílio”, “Ainda uma vez – Adeus”, “Seus Olhos”, “I-Juca-Pirama” e “Os Timbiras”.

Apesar das disparidades de berço e compleição física, tinham claras afinidades. Foram precoces. Eram intelectuais brasileiros, perfeccionistas. Estudiosos de línguas, literatura, história e geografia. Conheciam bem o tupi. Eram dedicados ao trabalho e apaixonados por seu país. Em destaque, a curiosidade pela etnografia dos povos pré-cabralianos.

Em 2 de setembro de 1847, por proposta de Araújo Porto Alegre, Gonçalves Dias foi admitido como integrante do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o que o aproximou de Pedro II, o qual chegava a distribuir trabalhos de pesquisa aos membros do sodalício. Dias era um dos mais assíduos e ativos membros do instituto.

Uma das missões acadêmicas dadas pelo ainda jovem imperador ao poeta foi pesquisar o estado físico, intelectual e moral dos indígenas do Brasil, comparativamente, antes e depois da chegada dos europeus. Daí nascia o primeiro trabalho da etnografia nacional.

Em outra oportunidade, Gonçalves Dias investigou e escreveu, por proposta de Dom Pedro II, acerca de uma lenda antiga da Amazônia: a existência de amazonas no Brasil. Haveria lá uma antiga tribo composta exclusivamente por altas guerreiras brancas. Interessante. Porém a pesquisa, lida no Instituto na presença de Sua Majestade, concluiu negando veracidade à versão.

Em 1851, o escritor foi nomeado oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e dos Negócios Interiores, cargo que também lhe permitiu manter contato com Pedro II e outros membros do governo imperial.

No tempo em que havia uma proximidade entre os poetas e a população, que lia e recitava versos em público, como hoje se canta uma música, Gonçalves Dias caiu na graça do imperador, pois trazia, em suas atividades literárias e científicas, as origens e as originalidades brasileiras, tanto que recebe a alcunha de Poeta da Raça.

O autor de Canção do Tamoio, depois de concluir seus estudos em ciências jurídicas na cidade de Coimbra e após uma breve estada na província do Maranhão, partiu em um vapor chamado Imperador para a Capital, onde passou também a trabalhar como um dos redatores da Revista Guanabara. O lançamento da revista calhou com o aniversário de Pedro II, oportunidade em que os seus redatores foram levados à Quinta de São Cristóvão.

Era 2 de dezembro de 1849. O monarca já conhecia o trabalho de Gonçalves Dias como jornalista e escritor aplaudido pela crítica. Ao se deparar com o maranhense da cidade de Caxias, o imperador percebeu que era o único a não ostentar no peito qualquer condecoração, um costume da época. Logo em seguida, espontaneamente, concedeu ao poeta o título de cavaleiro da Ordem da Rosa.

Há outras nuances na relação entre o poeta e o imperador. No Rio de Janeiro, Antônio Gonçalves Dias lecionava latim e história no Imperial Colégio D. Pedro II. Outra curiosidade é que o sogro de Dias, Dr. Cláudio Luís da Costa, era o médico da imperatriz Maria Leopoldina da Áustria. Foi diretor do Imperial Instituto de Meninos Cegos até o seu falecimento em 1869, aos 71 anos de idade. O escritor de Sextilhas de Frei Antão tinha uma excelente relação com o pai de Olímpia, com quem manteve um casamento infeliz. Era rude e possessiva. O romântico não a amava.

Em 1854, o Poeta Nacional foi o portador de correspondências de Dom Pedro II a Portugal. Levou para Lisboa carta destinada à Imperatriz Dona Amélia de Leuchtenberg, a segunda esposa de Pedro I. Levou também carta e livro ao Rei Regente Dom Fernando, pai do futuro Rei Pedro V. Entregou-os pessoalmente em audiência, do que deu conta ao monarca brasileiro, em carta datada de 2 de agosto daquele ano.

Em 10 de outubro de 1856, Dom Pedro II criou, com entusiasmo, a Comissão Científica de Exploração, a fim de estudar os recursos das províncias do Norte. Gonçalves Dias foi nomeado como chefe da Seção de Etnografia e de Narrativa da Viagem. Foi também incumbido de escolher e adquirir, na Europa, os instrumentos necessários para as expedições, como material fotográfico, pólvora, dinamômetros, fuzis e remédios.

A Ilíada americana, Os Timbiras, uma das produções mais importantes de Gonçalves Dias, não por acaso, em outubro de 1857, foi dedicada ao monarca, nos seguintes termos: “À Majestade/ do muito alto e muito poderoso/ Príncipe e Senhor/ D. Pedro II/ Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo/ do Brasil”. Não era bajulação: havia reciprocidade.

Pedro II realmente prezava o vate maranhense, a quem mandava livros de presente, como A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães. Os dois inclusive se comunicavam por cartas com certa frequência. Em uma delas, datada de 2 de março de 1958, Dias divide com o monarca um de seus projetos literários, no caso, a tradução do alemão para o português de poemas de Schiller e Reineke. Em outra carta, de 4 de fevereiro de 1857, lamentou que, por indisponibilidade de tempo, não incluiria o francês no seu Dicionário da Língua Tupi, resignando-se a publicá-lo em português e no idioma geral dos indígenas brasileiros. Na Biblioteca Nacional, há registro de 25 cartas escritas pelo poeta ao imperador.

Pouco se comenta, atualmente, que o soberano perdeu seu filho Pedro Afonso de Bragança. Era o primeiro na linha de sucessão ao trono brasileiro. O príncipe teve uma febre altíssima e morreu, prematuramente, com um ano de idade. Obviamente, o monarca, que já havia perdido um outro filho mais velho, ficou dilacerado. Gonçalves Dias logo escreveu e dedicou ao amigo Nênia à morte sentidíssima do sereníssimo Príncipe Imperial e Senhor Dom Pedro. O poema assim conclui: “Um povo inteiro em torno de um sepulcro,/ Um vácuo berço de seu pranto enchendo!/ À sorte pois te curva, e à lei daquele/ (envolta em seus recônditos desígnios)/ A quem aprouve nivelar, cortando/ Com o mesmo golpe as esperanças de ambos, / — A dor de um pai e as aflições de um povo!”

Sabedor dos crescentes problemas de saúde de Gonçalves Dias, um preocupado Pedro II, após visitá-lo, recomendou a um amigo comum que o metesse em um transporte e o levasse para tratamento médico fora do Rio de Janeiro. Para cuidados de saúde, consta que Dom Pedro II chegou a enviar dinheiro do próprio bolso ao poeta. Dias sofria então de sífilis e de tuberculose, além do mal que hoje se denomina de depressão. Isto se depreende das correspondências trocadas com o melhor amigo Alexandre Teófilo de Carvalho Leal.

O autor de Primeiros e Segundos Cantos, no período em que suas obras mais famosas eram vendidas no Brasil e no exterior — sim, Gonçalves Dias, tornou-se um escritor internacional ainda em vida — viajou para a Europa na busca de um tratamento salvático ou de uma despedida do velho mundo. Conseguiu o segundo intento.

Pouco tempo se passa da partida quando chega ao Brasil a impactante notícia da morte do seu indianista, na Europa. Comoção nacional. Missas fúnebres, artigos e declamações de despedida. Quando soube da notícia, Pedro II estava presidindo uma sessão do Instituto Histórico e Geográfico. Os trabalhos foram imediatamente suspensos, em demonstração de saudade e pesar. Era 24 de junho de 1862.

Em 3 de agosto, vem a contrainformação. Era fake news. O poeta estava vivo e rindo de suas exéquias. Outra pessoa, um marinheiro, havia morrido no mesmo navio que levou Gonçalves Dias à Europa. Como o escritor partira enfermo do Rio, ligaram tal falecimento ao poeta brasileiro. De Paris, bem humorado, exclamou em carta a Teófilo: “o fato é que entre as singularidades de minha vida terei de mais a mais o prazer singular e esquisito de ler as minhas necrologias”.

Da mesma forma que Pedro II depois da proclamação da república e do seu exílio na França, Gonçalves Dias não voltaria a pisar em solo brasileiro. Os tratamentos de saúde europeus não surtiram o efeito desejado. Desenganado, retornou para morrer em seu chão. Entretanto, o navio que trazia o escritor naufragou na costa maranhense. Fisicamente debilitado, em 3 de novembro de 1864, o escritor morreu afogado, aos 41 anos de idade. Seu corpo jamais foi encontrado.

Apesar de uma aparência octogenária, Pedro II faleceu com 66 anos, em 5 de dezembro de 1891. Foi enterrado na França junto a uma almofada com areia do Brasil.

Pois bem! Os apontamentos históricos dispostos ao longo do texto, de forma quase coloquial e cronológica, têm o propósito de descomplicar o emaranhado de questões exordiais, ensejando as respectivas respostas, mesmo que em elipse.

Percebe-se que Gonçalves Dias foi devidamente acomodado em funções no governo que lhe permitiriam — mesmo doente — ter alguma tranquilidade para produzir, bem assim pesquisar sobre os povos originários do país, temática recorrente em seus escritos científicos e poéticos.

Se o imperador concedeu ao poeta posição e funções públicas, Gonçalves Dias deu ao império identidade cultural para além de suas fronteiras, num período em que o Brasil precisava se consolidar como nação.

Porém, a relação entre Gonçalves Dias e Pedro II não se resumia a um pragmatismo político que aproximava o governo da literatura. Os fatos revelam mútuo respeito, preocupação e acolhimento, o que ratifica ter existido uma amizade concreta, no caso, decorrente de um encontro improvável entre um poeta e um rei.
É assim, nesse emaranhado de perguntas sobre a amizade entre o poeta e o imperador, que o fato se torna um acontecimento interpretado segundo um contexto cultural, emoldurado no espaço deste artigo. É assim que chega 10 de agosto de 2023, data em que o Brasil se mobiliza para homenagear o amigo de Pedro II, o maior escritor indianista brasileiro e um dos maiores poetas românticos de língua portuguesa: o maranhense Antônio Gonçalves Dias.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BANDEIRA, Manuel. Poesia e Vida de Gonçalves Dias. São Paulo: Editora das Américas, 1962.

DIAS, Antônio Gonçalves. Poesia Completa e Prosa Escolhida, Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda., 1959.

MONTELLO, Josué. Gonçalves Dias: ensaio biobibliográfico. São Luís: Edições AML, 2019.

MORAES, Jomar. Gonçalves Dias: vida e obra. São Luís: Alumar, 1998.

PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Brasilia: Senado Federal, 2017.