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Ocupante

Lourival de Jesus Serejo Sousa

  • Cadeira

    35

  • Data da Eleição

    17.06.2004

  • Data da Posse

    10.11.2004

  • Recepcionado por

    Carlos Gaspar

ANTECESSOR:

Biografia

Nasceu na cidade de Viana, Maranhão. Filho de Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa. Formou-se em Direito, em 1976, especializando-se em Direito Público, pela Faculdade de Direito do Ceará, em 1980 e, posteriormente, em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, em convênio com a Escola Superior da Magistratura do Maranhão. Atualmente é desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão.

Antes de ingressar na magistratura, Lourival Serejo foi advogado e Promotor de Justiça. Na magistratura já exerceu as seguintes atividades: Diretor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Maranhão, Juiz Auditor da Justiça Militar, membro do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão e Ouvidor do Tribunal de Justiça do Maranhão.

Lourival Serejo ocupa a Cadeira nº 35 da Academia Maranhense de Letras. É também membro fundador da Academia Maranhense de Letras Jurídicas, da Academia Imperatrizense de Letras e da Academia Vianense de Letras.

Bibliografia

Obras publicadas: O presépio queimado, Rua do porto, O baile de São Gonçalo, Do alto da Matriz, Na casa de Antônio Lobo, Da aldeia de Maracu à Vila de Viana, Entre Viana e Viena e Pescador de memórias.

Na área jurídica, Lourival Serejo tem vários trabalhos publicados nas principais revistas do país e os seguintes livros de sua autoria: Contribuições ao estudo do Direito; Direito Constitucional da Família;  Provas ilícitas no direito de família; A família partida ao meio; Formação do Juiz: anotações de uma experiência, Comentários ao Código de Ética da Magistratura Nacional e Os novos diálogos do direito de família.

Discursos de Posse

DISCURSO DE POSSE

Ilustríssimo Senhor Presidente da Academia Maranhense de Letras, na pessoa de quem saúdo os demais membros da Mesa Diretora e os Acadêmicos presentes,

Excelentíssimas Autoridades, Caros Confrades da Academia Maranhense de Letras Jurídicas, da Academia Imperatrizense de Letras e da Academia Vianense de Letras e Representantes das demais Academias de Letras deste Estado, Caros colegas da Magistratura, Juízes e Desembargadores, Membros do Ministério Público estadual e do federal, Senhores Advogados,
Estimados conterrâneos,
Meus familiares, Senhoras e Senhores:

Já tinha dito Sêneca elegantemente, e disse depois com mais elegância São Bernardo, que a primeira parte do agradecimento, e as primícias que mais agradam e satisfazem a quem faz o benefício, é o gosto, a alegria e a estimação com que o mesmo benefício se abraça, aceita e recebe.

Eis, senhores acadêmicos, nestas palavras colhidas do padre Antônio Vieira, em seu Sermão de Ação de Graças, o resumo dos meus sentimentos neste instante: o gosto, a alegria e a estimação pela honra e o elogio que recebi de vossas mãos em conceder­-me o privilégio de entrar nesta Academia.

Minha emoção tem a extensão do ideal que plantei um dia: o de integrar o quadro dos membros da Casa de Antônio Lobo e o impacto de me ver pertencendo a um mundo, que nos meus tempos de ginásio, só via como destinado aos grandes homens, cujas biografias vinham ao fim de cada texto do nosso livro de língua portuguesa.

Recebo os amigos e convidados nesta solenidade como testemunhas de um fato e de uma realização pessoal que me enleva de contentamento. Estão aqui, chamados a vir ajudar o homenageado a suportar a força desta emoção, pois não se apoia e consola só os doentes, mas os vitoriosos também, porque o homem não é uma ilha para experimentar, sozinho, dores e alegrias, sem o conforto do calor humano que o mantém vivo e ligado a seu grupo social.

Agradeço a todos os presentes e aos meus familiares, especialmente à minha mulher e aos meus filhos, que cultivaram para mim o ambiente propício para minhas produções literárias e jurídicas que me deram o passaporte para ser o merecedor desta solenidade.

Permiti­-me, ainda, senhores acadêmicos, que dedique esta noite aos meus pais ausentes na eternidade, Nozor Lauro Lopes de Sousa e Isabel Serejo Sousa, que me apontaram os caminhos da vida, com o exemplo do trabalho, do estudo e da oração.

Não posso deixar de compartilhar esta alegria e envaidecimento com todas aquelas personagens que visualizei do alto da matriz da minha terra, da minha cidade de Viana, daqueles perfis que circularam em torno da minha circunstância e contribuíram, de qualquer modo, para formar o feixe da minha personalidade.

Esta é também uma noite vianense. Noite que me faz reviver os encantos daquela cidade que acolheu meus pais e onde nasci e vivi enlevado pelo imaginário de suas lendas, pelo aconchego de suas ruas estreitas, pela bênção de Nossa Senhora da Conceição do Maracu e pelo embalo das águas do seu lago, que o poeta Astolfo Serra exalta em seus versos: “Águas cristalinas, águas azuladas,/ Sempre murmurando em notas comovidas/ As canções das flores, — lâmpadas perdidas,/ Acendendo em chamas as pétalas douradas…”.

De forma especial, minha posse relembra a dos quatro vianenses que já passaram por este mesmo momento de glória: Astolfo Serra, Raimundo Lopes, Antônio Lopes e Carlos Gaspar. Vale lembrar ainda Celso Magalhães, patrono da Cadeira Nº 5 desta Academia. Alio­-me a eles como numa corrente de filhos orgulhosos de sua maternidade.

Se eu for buscar a origem mais remota que marque o início da minha jornada, em direção ao farol desta Casa, a encontrarei no dia em que retirei o primeiro livro de Monteiro Lobato da estante lá de casa e comecei a sua leitura, ali mesmo, na sala de visita. Desde aí não parei mais; fui absorvido por um redemoinho de aventuras, emoções e prazer em cada leitura, até entregar­-me totalmente a esse vício rejuvenescedor, a essa forma de felicidade, como dizia Jorge Luis Borges, desse mundo povoado de sonhos e da mágica das palavras. Expressa bem esse estado de espírito o poeta de nossa geração tropicalista, Caetano Veloso, quando canta: “Mas os livros que em nossa vi da entraram/ são como a radiação de um corpo negro/ apontando pra expansão do Universo/ porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (e, sem dúvida, sobretudo o verso) é o que pode lançar mundos no mundo”.

Depois, como uma consequência natural, veio a necessidade de expressar-­me pela escrita. E esse interminável ofício de escrever conduziu­-me ao atrevimento de publicações já realizadas e outras tantas em fase de planejamento.

Vivendo esses estímulos, naturalmente senti­-me compelido a tentar uma vaga neste Sodalício para conquistar um ambiente propício à expansão do meu ser/literatura, como os pássaros de plumas iguais que se atraem. Entretanto, para externar esse desejo e depois torná­-lo realidade, precisei do estímulo de amigos que me fizeram suplantar minha timidez, dando­-me o impulso para transpor os umbrais deste Cenáculo de Inteligência e ser ungido pela imortalidade.

A vocação de acadêmico é, a meu ver, a primeira condição de admissibilidade em uma academia. Depois, afirmar-­se como acadêmico é um processo permanente de aprimoramento que se perfaz pelo desempenho de atividades culturais, pela produção literária e pela convivência.

Ao deparar­-me como membro de uma instituição tão séria e respeitável que abriga em seu seio, por tradição, a quintessência da intelectualidade maranhense, questiono-­me sobre a função que o intelectual deve desempenhar na comunidade para corresponder ao respeito que infunde. Na sociedade moderna, creio que não há mais lugar para o intelectual nefelibata, alheio às renovações do mundo. A participação nos grandes debates sociais deve ser a tônica para servir­-lhe de estímulo e atuação.

Norberto Bobbio, que foi um intelectual orgânico, participativo, em sua obra Os intelectuais e o poder, faz um alerta que bem cabe repetir: “O intelectual tem o dever de iluminar a opinião pública a respeito dos perigos que ameaçam a conservação de alguns bens supremos, aos quais a sociedade civil não pode renunciar. O intelectual como protetor de valores superiores”.

Esse mesmo entendimento já foi defendido antes, nesta tribuna, pelo nosso confrade Joaquim Itapary quando, em seu discurso de posse, enfatizou: “Entendo que esta Academia não se pode dar ao prazer de ser apenas um lugar de culto à Literatura e às Belas Artes. Pela qualidade de seus membros e pelo conceito de que desfruta, ela deve ser, também, uma ponte de resistência, um centro de reflexão e crítica, um fórum de debates, um porto de formação de dirigentes culturais”.

É nesse sentido que visualizo a responsabilidade do intelectual recebido em uma academia. E sendo maranhense esta academia, que contribua para a elevação da consciência social e política deste Estado e favoreça a divulgação das nossas letras, para assegurarmos o prestígio que conquistamos na história da inteligência brasileira.

Senhoras e senhores:

Passo, agora, em obediência à liturgia acadêmica, a falar dos meus antecessores.

Por esta Cadeira de número 35, patroneada por César Marques, passaram ilustres intelectuais como Raul de Azevedo, José Vera­-Cruz Santana e Clóvis Pereira Ramos.

Dos meus três antecessores, conheci apenas, de longe, devotando-­lhe o respeito que merecia, o advogado José Vera­-Cruz Santana. Invoco a sua condição de advogado porque nessa época eu estava como estudante de Direito, já envolvido pelo círculo forense, e só ouvia referências elogiosas à sua pessoa como profissional modelo a quem desejasse se aventurar pelos caminhos da advocacia. Conhecia também sua atuação como jornalista e como membro do Tribunal Regional Eleitoral, na categoria de jurista. Em todas essas atividades, e, ainda, como escritor, marcou sua personalidade, forjada no trabalho, na disciplina e no talento.

José Vera­-Cruz Santana nasceu no município de Coelho Neto, em 24 de outubro de 1923 e faleceu, nesta cidade, em 24 de agosto de 1988. Deixou uma considerável produção literária consistente em contos e artigos jornalísticos sobre os assuntos mais diversos, além de vários estudos jurídicos de reconhecida utilidade.

Na Academia Maranhense de Letras Jurídicas, José Vera-­Cruz Santana é o patrono da Cadeira Nº 33, cujo titular é o seu filho, dr. José Cláudio Pavão Santana, jurista de prestígio reconhecido em nosso Estado.

O fundador da Cadeira Nº 35, Raul de Azevedo, tem uma biografia rica em diversas ocupações, mas desconhecida em sua terra natal. Além da Academia Maranhense de Letras, pertenceu à Academia Amazonense de Letras, onde fundou a Cadeira Nº 25, que tem como patrono Aluísio Azevedo, e era sócio correspondente da Academia Cearense de Letras. Foi romancista, contista, teatrólogo, crítico, ensaísta e conferencista. Dedicou-­se, paralelamente a essas atividades, à política partidária, chegando a exercer o mandato de deputado estadual no Estado do Amazonas.

Nasceu Raul de Azevedo em São Luís, em 3 de fevereiro de 1875, e faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de abril de 1957.

A bibliografia de Raul de Azevedo é vasta e marcada por uma multiplicidade de assuntos, com obras publicadas por editoras de Lisboa, Porto, São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus, o que reflete o alcance de sua atuação como intelectual e a receptividade que seus livros mereceram, a ponto de ser considerado pela crítica de então como “nome dos mais cintilantes da literatura luso­-brasileira, pela sua qualidade de escritor eminente que tem dado às letras contemporâneas romances, críticas, crônicas, ensaios, conferências e contos, além de colaboração diuturna aos órgãos da imprensa, do país e do estrangeiro”.

O desconhecimento de sua produção literária deve ser tomado como um desafio para os programas editoriais deste Estado. Para aquilatar-­se a importância desta reivindicação, encontra­-se disponível no site da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas quatro livros de Raul de Azevedo, a saber: A alma inquieta das mulheres (conferências), Amigos e amigas (teatro), Confabulações: páginas de outrora e de hoje (crônicas) e Terra a terra o meu jornal.

Só para confirmar seu amor pelo Maranhão, vale a pena ressaltar dois parágrafos da conferência que pronunciou no dia 28 de julho de 1923, a pedido da colônia maranhense, em Manaus, para comemorar o centenário de adesão do Maranhão à Independência. Disse Raul de Azevedo, com justificável ufanismo:

O Maranhão foi sempre imaginação. Ele tem páginas de Ariosto no Orlando Furioso, de Dante no Inferno, de Milton no Paraíso, de Virgílio na Eneida. Mas também foi sempre o Feito, a cruzada em prol da Pátria, múltiplas façanhas por uma liberdade que era aspiração suprema, por uma independência que era uma obcecação da Raça.

E daí o seu triunfo, o seu apogeu, a sua Glória, nas épocas douradas de antanho, nimbadas de luz, preponderante e dominador nas letras e nas guerras; daí nos dias cruéis e decepcionadores de hoje, ser a Tradição que se ama e se respeita, clarão que ainda e sempre irradiará saber puro e cultura apurada, para o nosso encanto e a nossa fama. É como se fosse uma Grécia bem amada…

Sobre César Marques, antes de traçar seu perfil, merece que eu destaque, a título de homenagem, o devotamento do presidente desta Casa, o acadêmico Jomar Moraes, porque há alguns anos ele vive tão intrinsecamente ligado a César Marques que não seria exagero dizer que Jomar Moraes conhece até a alma de César Marques. É que nesse trabalho a que se atirou de revisar o Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, ele tem estudado palavra por palavra e conferido vírgula por vírgula de toda a obra genial do patrono desta Cadeira. E como se não bastasse essa dedicação, ainda fez de César Marques o tema de sua dissertação de mestrado em História pela ufpe, com o título O homem-dicionário: a vida em obras de César Marques.

César Augusto Marques, Cavaleiro da Real Ordem Militar Portuguesa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa, Reitor do Internato do Imperial Colégio Pedro ii, nasceu na cidade de Caxias, aos 12 de dezembro de 1826 e faleceu no Rio de Janeiro em 5 de outubro de 1900. Era filho do farmacêutico Augusto José Marques, português de Caldas de Rainha, e de dona Feliciana Maria Barros Marques, descendente de nobres portugueses. Foi para Portugal, com o propósito de estudar Medicina, na Universidade de Coimbra, mas teve que interromper os estudos por causa da instabilidade da política portuguesa que desencadeou o movimento popular conhecido pelo nome de Revolução de Maria da Fonte. De regresso ao Brasil, matriculou-­se na Faculdade de Medicina da Bahia, aí colando grau em 1854.

Pelo espaço que se permite a um discurso de posse, não me preocupei em ser exaustivo ao enumerar todos os títulos recebidos por César Marques, nem todas as atividades que desempenhou. Assim, além do que já foi destacado, lembro ainda que o patrono da Cadeira Nº 35 foi membro da Sociedade Geográfica de Paris, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e sócio correspondente de institutos históricos de vários Estados brasileiros. É o patrono da Cadeira Nº 22 do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e da Cadeira Nº 9, da Academia Maranhense de Medicina.

Para bem vislumbrar a personalidade de César Marques, passo a destacar quatro de suas atividades que marcaram sua trajetória de vida: o historiador, o tradutor, o médico e o religioso.

O historiador César Marques foi um eterno apaixonado pela história e um pesquisador infatigável. Publicou, em 1861, o Almanaque histórico de lembranças brasileiras, que teve mais dois números publicados posteriormente (em 1862 e 1868). Ainda em 1862, publicou Breve memória sobre a introdução da vacina em Maranhão e, em 1864, Apontamentos para o dicionário histórico, geográfico, toponímico e estatístico da Província do Maranhão, sendo este, em 1870, concluído e publicado com o título definitivo de Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão.

Mas a dedicação de César Marques à história vai além do seu Estado, levando-­o à ousadia de publicar, em 1878, o Dicionário histórico, geográfico e estatístico da Província do Espírito Santo.

Pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro são vários os trabalhos publicados por César Marques, com temas de suma importância à memória maranhense.

O mérito de César Marques como desbravador do documentário histórico maranhense pode ser avaliado pela informação de Raimundo Nonato Cardoso, em seu estudo sobre a documentação histórica do Maranhão, na introdução à segunda edição do Dicionário, quando se refere à vinda do poeta Gonçalves Dias ao Maranhão, em 1851, em missão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, à procura de documentos para o levantamento de dados sobre nossa História. Ressalta Cardoso a decepção que teve o autor de Os Timbiras, ao constatar o estado lastimável em que se encontravam nossos arquivos, pois

em lugar nenhum, nem na biblioteca do Convento de Santo Antônio, nem no convento das Mercês, onde não havia sequer uma bíblia, nem no Convento do Carmo — verificou o poeta — onde não havia nem estantes nem livros, nem no Palácio do Governo, em nenhum lugar quase nada havia que correspondesse melhor aos objetivos de sua missão.

É nesse contexto que surge o mérito de César Marques, em vencer tantas dificuldades para fazer tantas pesquisas e coligir as mais variadas informações encontradas em seus diversos trabalhos publicados. Não se deve analisar o historiador César Marques à luz de uma metodologia rigorosa de pesquisa, própria dos historiadores modernos, pois não se pode esquecer de que César Marques era um médico em pleno exercício de sua profissão e que se atirou à pesquisa histórica por pura paixão e espírito científico, mesmo sem os rigores de um scholar.

Só o acendrado idealismo de César Marques pela nossa história lhe daria tantas forças para resistir aos dissabores que teve para publicar a 1ª edição do seu Dicionário e lhe daria também o conforto de sonhar até o último momento de sua vida com a reedição dessa mesma obra, que só viria a ocorrer em 1970, patrocinada pela sudema, sob a presidência do nosso confrade Joaquim Itapary.

Como tradutor, César Marques foi o responsável pela tradução de obras de considerável relevância, dentre as quais se destacam, pela sua importância à memória maranhense, História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças, do padre Claude D’Abbeville, em 1874, e Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614, do padre Ives d’Evreux.

Como médico, em 1854, ao defender sua tese intitulada

Breve memória sobre o clima e moléstias mais frequentes da Província do Maranhão, já denunciava a sua vocação de pesquisador e a concorrência que teria essa opção com o exercício da Medicina. Posteriormente, ingressou no Corpo de Saúde do Exército, tendo prestado serviços no Pará, Piauí, Amazonas e Maranhão. Na capital maranhense, foi provedor de saúde do Porto de São Luís e assumiu outras importantes funções até ser investido na patente de 2º cirurgião­-tenente do Corpo de Saúde do Exército, em setembro de 1859, posto em que permaneceu até novembro daquele ano, ocasião em que pediu exoneração do exército, quando servia no Estado do Pará. As múltiplas atividades que César Marques exerceu como médico demonstram que ele abraçou a Medicina por disposição vocacional e a exerceu com todo o afinco, muito acima do comodismo e da mediocridade.

O religioso César Marques se revela, ao se constatar em sua biografia que pertenceu a três ordens religiosas: Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos, Irmandade Bom Jesus dos Navegantes e Irmandade Nossa Senhora dos Remédios. E mais ainda, como disse desta tribuna meu antecessor, em seu discurso de posse, César Marques publicou “com ardor de homem da Igreja”, vários trabalhos, dos quais destacam-­se: a Biografia do Exmo. Sr. D. Manuel Joaquim da Silveira, Arcebispo da Bahia; Estabelecimento da Igreja Católica, Apostólica, Romana, do Maranhão e Vida e feitos de Dom Frei Miguel de Bulhões e Sousa, 3º Bispo do Grão-Pará. Até mesmo o seu Dicionário teve como estímulo inicial a reverência que dedicava aos homens da Igreja, pois resultou de uma promessa que fez aos apelos do arcebispo da Bahia, dom Romualdo Antônio de Seixas, no último ano do seu do curso de Medicina, em 1854.

Feita essa análise geral sobre a vida de César Marques, volto à falar da obra que o imortalizou. Não se pode desconhecer que o ponto culminante da sua vida como pesquisador e historiador ocorreu em 1870, com a publicação do seu Dicionário Histórico-geográfico da Província do Maranhão, o que contribuiu para consolidar seu prestígio em todo o território nacional.

Qualquer estudioso de História, versado nos modernos métodos de pesquisa e historiografia, percebe com facilidade as falhas do Dicionário de César Marques. Mas essa conclusão técnica não afastará o valor que os estudos dele representam porque foram frutos de um esforço pessoal, de uma vontade férrea, “roubando ao sono o descanso do corpo e do espírito, depois de dias bem trabalhosos, bem cheios de fadigas”, conforme seu mesmo desabafo.

Exemplo da permanente utilidade dos estudos de César Marques é o livro História do Maranhão, do nosso saudoso Mário Meireles, respeitado historiador e consulta obrigatória de estudantes e professores. Ao longo dessa obra, o autor faz doze alusões a César Marques e ao seu “nunca assaz louvado Dicionário”, para citar sua própria referência, o que bem reflete o valor que emprestava a esse catecismo de nossa história.

Nesse afã de enaltecer meu patrono e a obra que o notabilizou, encontrei­-me com um vianense, que colocou todo seu talento de professor e historiador a rever o Dicionário de César Marques, para completá­-lo e reparar seus equívocos. Trata­-se de Antônio Lopes da Cunha, que dedicou a esse objetivo uma contribuição de tal monta, como disse Jomar Moraes, em sua dissertação, que a bem dizer “fê­-lo seu coautor”.

Uma análise sistemática e minuciosa do Dicionário, leva-me a constatar que, na elaboração de sua obra, o dr. César Marques deixou-­se influenciar pela postura de um anatomista, preocupado em dissecar parte por parte de um organismo e nominar cada órgão, cada detalhe, cada função. É assim, com essa visão de um cientista, que ele buscou, em cada município do Estado, sua origem histórica, seu relevo, todos os seus dados geográficos, o nome de cada rio, de cada riacho. Assim, o médico e o historiador se completaram para produzir uma obra com a dimensão que se configurou, revelando, na expressão de Henriques Leal, “em seu autor muito amor pelas coisas pátrias, trabalho aturado e paciente, e infatigável zelo em desentranhar tantas notícias, escondidas nas secretarias e cartórios dessa cidade”.

Todo estudo de Geografia e História do Maranhão, no período colonial e imperial, começa com César Marques, seja para concordar-se, seja para completá­-lo ou corrigi-­lo.

Pela percepção que César Marques teve, no seu momento, de resguardar dados históricos que teriam fatalmente se perdido no tempo, tenho-o como um profeta, não do passado, como já foi dito sobre todo historiador, mas um profeta na sua acepção verdadeira, daquele que antevisa o futuro, o futuro dos estudos da História e da Geografia do Maranhão que seriam mais reduzidos sem as suas pesquisas.

Resta­-me, agora, o último ponto obrigatório da minha oração, que é falar sobre o ocupante anterior da Cadeira Nº 35. Para a maioria dos empossados, essa última tarefa se torna mais eloquente pelo conhecimento, convivência, contatos e até familiaridade mantida com o seu antecessor imediato. No meu caso, faltou-­me essa facilidade por não ter conhecido Clóvis Ramos. Para suprir essa deficiência, procurei seus amigos e admiradores para, por meio dos seus depoimentos, aquilatar a sua personalidade. O resultado da pesquisa não poderia ter sido melhor. Por unanimidade dos entrevistados, dentre eles José Filgueiras, Mílson Coutinho, Jomar Moraes, Nemias Carvalho, Manuel Lopes e Carlos Gaspar, posso afirmar-­vos que Clóvis Ramos era um homem bom, na acepção maior da palavra, abrangendo sua cordialidade no trato para com as pessoas, sua dedicação e espiritualidade, até porque era um discípulo de Alan Kardec, desenvolvendo no seu dia a dia a benquerença e o amor ao próximo como conduta efetiva de vida.

Clóvis Pereira Ramos foi jornalista, poeta, historiador e pesquisador. Tinha o plasma da maranhensidade em suas veias, embora tenha nascido lá pelas fronteiras do Brasil com o Peru, onde seu pai servia como militar, no forte Tabatinga, então município de Benjamin Constant, no Estado do Amazonas. Era filho do casal de maranhenses José Silva Maia Ramos e Josefina Pereira Ramos. Chegou a São Luís aos 5 anos de idade. Formou­-se em Direito, no Rio de Janeiro, e, retornando ao Maranhão, tornou-­se promotor público, com titularidade nas comarcas de Vargem Grande e São Vicente Férrer, entre 1955 e 1958. Posteriormente, foi assessor de comunicação da Secretaria de Cultura do Maranhão e delegado regional do trabalho.

Pertenceu Clóvis Ramos, ainda, ao Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, ao Instituto Campista de Letras, à Academia de Letras e Artes de Brasília, à Academia Brasileira de Trova, ao Instituto de Cultura Espírita do Brasil e à Federação das Academias de Letras do Brasil.

Em crônica que lhe foi dedicada, em seu espaço da quarta­-feira de 15 de outubro de 2003, n’O Estado do Maranhão, Jomar Moraes fez uma análise em que projeta o homem e o pesquisador que foi Clóvis Ramos, retratando-­o como uma pessoa que “tinha tão grande e nobre coração que nele não cabiam as mesquinharias do despeito e da inveja”.

Uma pessoa com qualidades tão distintas, de sensibilidade acurada, não poderia deixar de ser um poeta “eternamente voltado às mais belas manifestações do pensamento criador”, na expressão de Nonato Masson. E nessa condição exprimiu-­se em versos que, reunidos, formaram sete livros de poesias, começando com Evangelho do poeta, em 1953, seguindo­-se O pranto ao limiar (1956); Rosa de cinza (1957); Amarga tatuagem (1960); Estrela mansa (1985); Leito dos ventos (1988) e Estão florindo os roseirais (2000).

A poesia de Clóvis Ramos é essencialmente lírica, em que predominam o subjetivismo, a abundância de sentimentos, dores, sensações, saudades. E, sobretudo, é permeada de musicalidade e de ritmo próprio.

Pesquisador incansável, Clóvis Ramos preocupou­se em selecionar os poetas maranhenses e escrever toda a história literária do Maranhão, retirando nomes do esquecimento e contribuindo para manter viva nossa tradição cultural. Desse trabalho exaustivo de pesquisa e sob inspiração de Gonçalves Dias, surgiu o quinteto com títulos curiosos de sua autoria, a começar com Minha terra tem palmeiras (1970); Onde canta o sabiá (1972); Nosso céu tem mais estrelas (1973); Nossas várzeas têm mais flores (1975) e As aves que aqui gorjeiam (1993).

O sentimento de amor que Clóvis Ramos dispensava a São Luís igualava-­se às variações das nossas marés. Quando estava aqui, vivia cheio de emoções e sua satisfação era notada por todos os seus amigos, até pelas poesias em que externava essa alegria:

Estou em São Luís e, novamente,
Cantarola em meu peito um amor
antigo. Digo num verso comovido e
ardente, Tudo o que sinto como meu
castigo.

Por uma rua ensolarada sigo
E meu pensar, talvez, ninguém pressente.
Ah! meu sonho de amor, que ainda persigo!
Ai! Saudade que fere ferozmente!
Pelas praças, que flores perfumosas!
O sol as beija como beija as rosas
Dos lábios da mulher que se quer bem.
São Luís é a cidade da ternura…
Em cada canto um sonho meu perdura,
Perdura, em cada canto, o olhar de alguém!

Na vazante, era levado para o Rio de Janeiro e, ali, suspirava de saudades destilando versos de lembranças:

Ah! tudo em São Luís vira poesia
na saudade que vem, terna saudade,
que nos maltrata e nos alivia!
E sonhando um amor, espero, ainda,
Rever a terra da felicidade,
Que tanto quero, com ternura infinda.

Assim, nesse vai e vem, consumiu sua vida numa permanente busca, até que a última baixa­-mar o fixou definitivamente em Niterói, quando de sua morte, em 7 de outubro de 2003, com 81 anos de idade, pois nascera em 20 de novembro de 1922.

No campo do espiritismo, Clóvis Ramos chegou a publicar seis obras, como expressão do seu devotamento à doutrina kardecista.

Curiosa coincidência da Cadeira Nº 35 é que entre três dos seus integrantes, há um denominador comum: o Estado do Amazonas. Em Manaus, César Marques, o patrono, foi nomeado provedor de Saúde do Porto de Manaus, lecionou Aritmética, Álgebra e Geometria, no Liceu Amazonense, e chegou a ser nomeado médico da Câmara Municipal de Manaus; Raul de Azevedo desempenhou, naquele Estado, atividades políticas e literárias, chegando a ter assento na Academia Amazonense de Letras e a exercer o mandato de deputado estadual. Por fim, ali nasceu Clóvis Ramos, no município de Tabatinga.

Outra coincidência é que, tanto César Marques, quanto Clóvis Ramos, morreram no Rio de Janeiro, suspirando as dores do exílio, sem desfrutar os primores que só se encontram por cá.

Senhoras e senhores,
Estimados acadêmicos:

Duas vocações sustentaram o itinerário da minha existência até hoje: a magistratura e a literatura. No exercício da magistratura, percorri diversas regiões deste Estado, procurando distribuir justiça àqueles que clamavam pela sua atuação. Paralela a essa atividade e para amenizar suas intempéries, busquei na literatura a satisfação que me transporta para o mundo do fantástico e me leva para cidades invisíveis, em companhia de Italo Calvino, Garcia Márquez, Juan Rulfo e tanta gente amiga que se encontra pelos caminhos.

Compatíveis entre si, tanto a magistratura quanto a literatura convivem na minha preferência, no mesmo nível de valoração, buscando, inclusive, em fatos reais e no contato com os mais diversos tipos humanos, inspiração para algumas produções literárias já publicadas e outras por publicar.

Particularmente, no desempenho de minhas funções judicantes em uma vara de família, tenho formado o arcabouço das emoções e absorvido os perfis mais variados, ao aquilatar, no dia a dia, as vicissitudes do homem em suas múltiplas facetas: do santo ao perverso, do virtuoso ao desprovido de sensibilidade, formando o tirocínio que me leva à pretensão de parodiar Terêncio, para dizer: “Nada que é humano me é estranho”.

Essa convivência do Direito com a Literatura não é fato recente; vem desde a Antiguidade, de onde sobressai a peça Antígona, de Sófocles, verdadeiro tratado de Direito Natural com repercussão na Ética e no Direito Penal grego. No Brasil e no Maranhão, só para ilustrar, cito alguns nomes que viveram e vivem essa duplicidade de vocação: Clóvis Beviláqua, José de Alencar, Monteiro Lobato, Lígia Fagundes Teles, Graça Aranha, Carlos Madeira, Mílson Coutinho e tantos e tantos outros. Senhores acadêmicos:

Ao final da minha oração, agradeço a Deus a realização deste ideal e volto a externar meus agradecimentos à generosidade de cada um de vós que depositastes vossa confiança em minha admissão nesta Academia quase secular. Garanto-­vos, sob inspiração do meu modesto percurso literário, depois de ter meu Presépio queimado, de andar pela Rua do Porto, envolver-­me com um Baile de São Gonçalo e desfiar minhas memórias Do alto da matriz, garanto-­vos que chego a esta Academia com a humildade de quem ainda precisa aprender muito e a ambição de ser um bom confrade. Obrigado.

DISCURSO DE RECEPÇÃO por Carlos Gaspar

Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia Maranhense de Letras e componentes da Mesa Diretiva desta solenidade,
Caros Confrades,
Excelentíssimas Autoridades,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Senhor Lourival de Jesus Serejo Sousa:

Estou nesta tribuna, sob a alegria do meu espírito, para vos acolher na Casa de Antônio Lobo, com o abraço e o sentimento de boas­-vindas, manifestados por todos os seus membros. Cumpro a regra estatutária, interpretada pelo Presidente, que permitiu a indicação do nome de quem desejaríeis para vos receber, daí porque recaiu sobre os meus ombros a responsabilidade de transmitir-vos o meu cântico de louvação, visto terdes sido consagrado titular, nesta Academia, da Cadeira de número 35, patroneada por César Augusto Marques.

Os motivos porque me escolhestes para abrir­-vos o portal desta confraria, entrardes nas suas dependências e tomardes assento definitivo na Cadeira para a qual fostes eleito, naturalmente decorreram das afinidades de pensamentos a nos aproximar, da amizade que vimos cultivando, e de sermos procedentes do mesmo torrão natal. Amigos tendes outros, dentre os que compõem esta Congregação, capazes de vos acolher de modo não menos efusivo do que eu, neste momento significativo da vossa caminhada como homem de letras. Todos eles dotados de imenso saber e desusada cortesia, assaz competentes para se desincumbirem, com brilhantismo, da saudação que ora vos dirijo, nesta marcante solenidade, que registrará para sempre o vosso encontro primeiro com os demais consócios desta quase secular instituição, cujo quadro passastes a integrar.

Assim como se manifestou João Neves da Fontoura, respondendo ao discurso de Álvaro Lins, na Academia Brasileira de Letras, devo também ressaltar, seguindo idêntica linha de raciocínio, que esta Academia, de algum tempo para cá, passou a se situar entre os vossos objetivos, em decorrência da consciência que tivestes da vossa intelectualidade, e é certo, também, que nós vos aguardávamos, pelo mesmo motivo. Deu­-se, dessa maneira, uma evidente convergência de vontades, revelada sob as bênçãos dos sufrágios determinantes do vosso ingresso nesta Casa, acrescentados com os aplausos de quem conhece vossas qualidades.

Disse ainda João Neves da Fontoura, naquela oportunidade, que havendo Álvaro Lins sido acolhido pela vontade unânime dos membros da Casa de Machado de Assis, o seu elogio já estaria feito, tal a revelação inequívoca dos que o consagraram como novo confrade. Idênticas foram as circunstâncias em que vos acolheu a Academia Maranhense de Letras, o que poderia eximir­-me do compromisso de que agora me desincumbo, ficando esta seleta assistência dispensada do castigo de escutar­-me, após haver aplaudido vosso primoroso discurso. Mas, a bem dizer, a presente solenidade não se completaria, à luz do ritual acadêmico, se esta fase fosse suprimida.

Chegais aqui, senhor Lourival Serejo, com o vosso bornal recoberto de pedras cintilantes, a conduzir, através das obras que publicastes, a expressão do vosso talento e da vossa verve de jurista, de cronista e contista, de memorialista e folclorista. Seguistes, portanto, as lições dos nossos ancestrais, cujos nomes acabastes de mencionar, que honram as tradições culturais da Viana, a terra em que nascestes, sob a beleza de paisagens verdejantes, a cingi-­la e a aformoseá-­la.

Vindes, também, envolto pela convicção de que aqui deveis permanecer para sempre, assim como vos cabe prestar reverências a tantos homens consagrados pela imortalidade acadêmica, que deixaram marcas indeléveis de sua cultura, fontes inspiradoras e paradigmas no mundo das ciências e das letras. Daí porque, ao ingressardes neste instituto, sois acolhido sob justificados aplausos, nesta noite de gala, iluminada pela auréola de vosso merecimento. Às qualidades de pesquisador infatigável e abnegado cultor da literatura e das letras jurídicas, com que engrandeceis este Sodalício, aliastes o vosso comportamento exemplar, cativante de todos nós. Ademais, possuís a virtude da boa convivência, tão importante no fortalecimento dos laços de solidariedade que nos unem.

Senhor Lourival de Jesus Serejo Sousa:

Nesta São Luís vos fixastes para cursar o então segundo grau, a partir de 1969. Ao tempo, parecia, teriam ficado para trás os anos da meninice e já os da adolescência, trocados pelo impulso do vosso talento, que pacientemente soubestes cinzelar. Mas, na verdade, sem perceberdes, trouxestes esses anos primaveris da vossa existência, incrustados na vossa alma alimentada pelos sonhos de um futuro auspicioso. Àquela altura, como bem dissestes, não pensáveis que a esta instituição passaríeis a pertencer e que hoje proferiríeis vosso discurso de posse, bem ao estilo da vossa simplicidade e não menos da vossa obediência aos preceitos da Casa. Por essa razão, delimitastes a fala que acabais de pronunciar, homenageando o patrono da Cadeira que ireis ocupar, bem como os que nela se sentaram ao longo de décadas, desde sua fundação. Nenhum registro de realce fizestes sobre vossa pessoa, magistrado exemplar que sois, obediente às normas regimentais desta entidade e, sem dúvida, em decorrência do vosso temperamento talhado de modéstia.

Essa conduta vos enobrece sobremodo, dado que preferistes manter a coerência com que pautastes a brilhante trajetória que vos trouxe até aqui. Para que vencêsseis tal percurso, devo confirmar, muitas refregas travastes, e uma delas, orgulho da vossa abnegação, fez com que abraçásseis a magistratura, e, no exercício dessa espinhosa função, nela vos revelásseis operoso, sensato no trato do Direito e da Justiça, e estudioso incansável nos deslindes das teses, das teorias e das doutrinas jurídicas. Não vos limitastes, pois, às simples análises dos processos, tampouco às sentenças prolatadas com isenção.

A propósito, recorro à mitologia grega, para bem acentuar a linha do vosso comportamento de magistrado: Têmis, filha de Urano e Gaia, primitivamente sem venda, apresentava-­se portando uma balança na mão direita, símbolo da ordem e do Direito divino. Consideravam­-na deusa da Justiça. Por isso costumavam invocá-­la nos juramentos dos magistrados.

A venda teria sido invenção dos artistas alemães do século xvi, retirando­-lhe a visão. Essa faixa, cobrindo-­lhe os olhos, significava imparcialidade. Assim ela não veria diferença entre as partes em litígio, fossem ricas ou pobres, poderosas ou humildes, grandes ou pequenas. Suas decisões eram, desse modo, fundamentadas na sabedoria das leis.

Os tempos passaram, os conceitos evoluíram, adequaram­-se a uma nova realidade social e, seguindo o pensamento de renomados juristas, a Justiça não mais deve ser cega, mas de olhos abertos, ágil, acessível a todos, altiva, democrática e efetiva. Tirando­se­-lhe a venda, fica liberta para que possa ver. E, assim, ela poderá enxergar, com a visão desperta, a impunidade, a pobreza, o choro, o sofrimento, a tortura, os gritos de dor e as desesperanças dos necessitados que lhe batem à porta. Sob essa forma, passa a conhecer de onde partem os clamores, nomeadamente dos menos favorecidos pela sorte. Seus olhos atentos, então, derramam lágrimas, mas pela angústia de nem sempre poder ser verdadeiramente justa, no dizer de Damásio Sodré.

Sob esse prisma pode­-se afirmar que, ao aplicar Direito e distribuir Justiça, incumbe ao magistrado produzir um conjunto simétrico, de forma a que sua decisão, em vez de traduzir apenas a eventual estreiteza de textos legais, adquira a dimensão harmônica da proteção ao ser humano, tendo em vista as fragilidades sociais que sobre ele pesem, como parte no litígio.

Após terdes experimentado a labuta na banca advocatícia, exercido o cargo de promotor de Justiça, que galgastes através de concurso público em 1979, ao início da vossa judicatura, em 1981, quando a alcançastes sob o mesmo rigor probatório, senhor Lourival Serejo Sousa, percorrestes diversas cidades do interior maranhense, de comarca em comarca, distribuindo Justiça, como acabais de afirmar, e vos deparastes com os mais variados quadros, todos eles envolvendo pessoas de múltiplas classes sociais, em que prevaleciam, embora com menor intensidade do que hoje, a miséria e as contradições de que é vítima a população do nosso Estado. Como afirmastes no vosso trabalho intitulado Realidade e ficção na vida do magistrado, encontrado às páginas da Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, tivestes o privilégio, “que talvez outra função não proporcione, de conhecer o homem em sua inteireza”, fruto das dificuldades em que vos vistes envolvido. Essas circunstâncias serviram, ao meu parecer, para completardes a matéria-­prima de que necessitaríeis, com vistas a produzirdes a vossa já extensa obra doutrinária, digna dos elogios e aplausos de renomados estudiosos nacionais da ciência do Direito.

Além de inúmeros trabalhos que publicastes em revistas especializadas, de âmbito nacional, todos merecedores de reflexão pelos mais famosos juristas do país, nas suas áreas específicas, já vão a número de sete os livros de vossa autoria e coautoria, não menos referenciados pelos vossos colegas magistrados. O último deles, As provas ilícitas no Direito de Família, acaba de ser lançado, em âmbito nacional, pela Editora Thomson. Trata­-se de uma obra que, dada a importância do tema, por certo alcançará imensa repercussão, visto que ele não encerra matéria pacífica. Ao contrário, é controverso, polêmico, e nem na própria jurisprudência goza de acolhimento irrefragável.

Quem comenta, com absoluta propriedade, acerca de As provas ilícitas no Direito de Família, é o professor doutor Sérgio Torres Teixeira, da Universidade Federal de Pernambuco, que assim se expressa:

No livro, o autor descreve com maestria os contornos da prova judiciária e dos problemas relacionados à sua licitude, passando pela relevância da busca pela verdade e a preservação do direito à intimidade. Destacando a disciplina do procedimento probatório e da utilização das provas, expõe as implicações das provas ilícitas na seara do Direito de Família, e, por fim, examina o papel do magistrado na definição dos maiores justificadores da sua concessão.

Em capítulo de grande destaque, trata de considerações sobre a preponderância do bem ou interesse jurídico relevante, demonstrando profundo conhecimento acerca dos mecanismos de efetiva distribuição de justiça. E, adiante, se manifesta novamente:

Corresponde, sem sombra de dúvida, a uma obra absolutamente imprescindível na biblioteca de todos os operadores do Direito, notadamente aqueles que atuam no âmbito do Direito de Família, pois está destinada a ser uma referência obrigatória nos estudos e trabalhos dos respectivos profissionais.

Deixais transparecer, senhor Lourival Serejo, ao palmilhardes os espinhosos caminhos da magistratura, em que sobremodo vos destacais como civilista dos melhores, que a família vem sendo o foco de vossas atenções, dedicações e estudos, haja vista a ela haverdes dedicado a maioria das vossas atenções. Como célula, por certo tendes convicção de sua essencial importância no tecido social, o que justifica vosso devotamento ao estudo aprofundado, sob todos os ângulos, da instituição familiar.

Perder­-me­-ia noite adentro se me dispusesse, aqui, a citar, um por um, todos os estudos que publicastes em revistas e jornais, todas as conferências que proferistes, todos os eventos de que participastes, todos os cursos de especialização em que fostes titulado, todas as instituições de que fazeis parte, todos os títulos honoríficos com que fostes agraciado, todos os cargos que ocupastes, e alguns deles ainda ocupais, no âmbito da vossa brilhante e irrepreensível carreira na magistratura.

A par dessa sublime atividade, não menos foi profícua a vossa atuação no magistério, inicialmente como professor de 1° e 2º graus, em São Luís, Viana e São Bernardo, a partir de 1973. No magistério de nível superior, em específico na Universidade Federal do Maranhão, tanto em São Luís quanto em Imperatriz, além de professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Maranhão, sempre vos haveis com desusada saliência.

Tal como vos tendes conduzido na magistratura, vos afirmais, também, na literatura, demonstrando vossa capacidade de conciliar esses dois pendores, essas duas vertentes do vosso espírito, pois assim confessastes, no correr da fala com que acabais de brindar a todos nós. Tanto que, assim como membro fundador da Academia Maranhense de Letras Jurídicas, preocupado em congregar os amantes de Têmis, igualmente, sob o mesmo sentimento, buscastes arregimentar os afeiçoados à beleza da literatura, ao edificardes, a partir dos alicerces, a Academia Imperatrizense de Letras e a Academia Vianense de Letras.

Senhoras e senhores, caríssimos acadêmicos:

Pablo Neruda, em seu livro Confesso que vivi, nos dá o ensinamento necessário para sabermos distinguir a memória do memorialista, da memória do poeta. Aquele, isto é, o memorialista, diz Neruda, vive talvez menos, porém fotografa muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes.

Gabriel Garcia Márquez, escritor, Prêmio Nobel colombiano, autor do incomparável Cem anos de solidão, vem agora, em seu Viver para contar, no pórtico dessa obra, lembrar­-nos que “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-­la”.

O homem de memórias é um recriador, um fabricador permanente do passado, porém não pode fazê-­lo sem que aprenda o presente. No dizer de Pedro Nava, a título explicativo, o memorialista é aquele que “faz uma paisagem mais ou menos à moda daqueles pintores primitivos que pintavam Jesus Cristo, a Virgem Maria, São José com roupas medievais”. Sabe ele contar com a memória, no presente, para uma reinvenção contínua do passado.

Assim, à análise feita no plano da narração memorialística, completam-­se Neruda e Garcia Márquez, ao dizer o primeiro que o memorialista fotografa muito mais e, ao afirmar o segundo, que a vida é a que a gente recorda, e recorda para contá­-la. Convém, no entanto, acrescentar que

o compromisso do memorialista com a verdade ou com o lendário não é o mesmo do historiador. Ou seja: a este incumbe transmitir a verdade, somente a verdade; enquanto o outro, o memorialista, interpreta a verdade à sua maneira, de acordo com a sua emoção.

Ou com o clique de sua máquina fotográfica.

Lavradas essas considerações, deve­-se sempre levar em conta a relação entre o tempo e a memória. Esta, mesmo sendo voluntária, pertence ao domínio do que hesita entre o simples relato e a ficção, ficção feita da massa de lembranças elaboradas com a experiência do narrador. E aí, quando a recordação escolhe seu tema, é provocada pela própria pessoa, e pode vir na sua verdade ou, então, falsificada pelas proibições da censura. Já a memória involuntária pode manifestar­-se em várias ocasiões, a partir de um sonho ou de um pesadelo, de um encontro imprevisto com algum lugar, um ser, um cheiro que pensávamos ter esquecido, mas que estavam prontos para renascer.

Os ensinamentos de Monique Le Moing, transmitidos em seu livro Solidão povoada, em que longamente aborda a problemática da memória, à luz da obra de Proust e com reflexos no que nos legou Pedro Nava, fornecem elementos suficientes para que possa ser analisada, de modo mais inteligível, qualquer produção intelectual voltada para o tempo passado, revivenciado através da memória.

Lourival Serejo, a quem dedico o presente elogio, apresenta­-se a esta Casa, também como um memorialista excepcional. É daqueles que recorda para contar, assim como, por um motivo inesperado, conta porque lhe veio a recordação. Nessa sua caminhada, em linguagem simples, porém dotada de um quê especial, a distingui­-la pela sua peculiaridade, nos legou, sucessivamente Presépio queimado, Rua do Porto e Do alto da matriz. Trata­-se de uma trilogia memorialística, tecida de modo gradativo, inicialmente entremeada de pequenos contos que, pelo seu conteúdo, se fazem grandes, alguns deles reflexo de relembranças de fatos, coisas e gentes.

No texto que elaborou, a título de apresentação do seu Presépio queimado, o novo confrade faz sua própria crítica acerca do que escrevera. E, para ilustrar tal apreciação, busca Humberto de Campos que, em Mealheiro de Agripa, relata a história de um ourives que perseverou durante dois anos polindo uma pedra que supunha ser diamante. E o cronista de Miritiba compara esse ourives sonhador com alguns homens de letras, que gastam a vida brunindo obras de pouca valia, como se fossem elas um diamante.

Lourival Serejo, como ele revela no corpo da apresentação, deteve­-se a pensar no longo tempo que consumiu, polindo, tal o ourives de Humberto de Campos, seus contos e crônicas. E é ele quem, logo a seguir, questiona: “Será que o meu Presépio queimado não passa de uma pedra de vidro, que, por força de tanto polimento, procuro acreditar que se trata de uma pedra preciosa?” Ao final o próprio autor responde: “Vidro ou diamante? Não importa, foi polido com a dedicação e a ansiedade de quem é pai pela primeira vez”. Estava nascendo o escritor memorialista.

Em seguida veio ele com uma coletânea de reminiscências, expressão dos bons anos em que residiu na cidade de Brejo, município em que aportou, no exercício de sua judicatura. Rua do Porto, o segundo livro da série, ganhou nome de um dos principais logradouros daquela comuna. Traduz, na integridade, o cotidiano da artéria, sob as atenções do então juiz de Direito, no transitar pela fascinante, talvez mais fascinante que importante rua. Nesse livro já aprimora seu estilo de observador crítico e ficcionista. O percurso que faz de sua casa para o local de trabalho é o foco dessa sua obra. No trajeto diário, tudo observa, põe uma dose de ironia e se coloca entre a realidade e o sonho. Assim, atento ao que acontece a seu redor, usando imagens no realce do que conta, com a graça do seu estilo, de modo perfeito, além dos costumes da terra, do dia a dia da cidade, a praça, a igreja e os devotos, e tantas outras constatações, descreve, também, certos personagens ou tipos que mais lhe chamaram a atenção. E aí, não esquece o velho Sinésio, trôpego, “procurando o tempo perdido”; a Maria Bina, que “é do morro, do alto da Rua do porto; é de cima de sua pobreza que olha a vida de todos e vive a sua”; o doutor Clemente Aragão, título de doutor trazido da Bahia, político à moda coronel, já envelhecido, cadeira preguiçosa à porta de sua casa na rua do Porto, ele sentado, querendo saber o conteúdo das cartas, geralmente abertas, que eram levadas para o Correio, chamando: “vem cá bestidade, traz essa carta aqui”. E tantos mais se seguem.

Para o memorialista, o fundamental na vida é o que já se foi, matéria que transfere ao leitor, em forma de realidade e ficção bem próximas do romance. Tanto é verdade que Lourival Serejo, no prólogo de Rua do Porto, assim se manifesta: “São crônicas e casos do que vi e senti naquela rua e que, tudo reunido, formam como que um romance… o romance de uma rua”. Senhoras e senhores, estimados consócios:

Da trilogia que vos enunciei, envolveu-­me e emocionou­-me sobremodo o último título que a compõe: Do alto da matriz. Embora de todos pudesse a mim afigurar-­se a obra que com maior facilidade e desenvoltura iria aqui me estender, tornou­-se mais difícil, pois de repente dei­-me embaraçado, em face de razões sentimentais. Daí nem sei por onde começar. Sei, sim, que o autor canta a sua terra, e minha também, com a mesma musicalidade dos grandes compositores que a colocaram no cenário maior da criatividade harmônica, do Entre-Acto saído dos sons instrumentais de Temístocles Lima, ou da maviosa valsa denominada Promenade sur le Lac, de Alexandre Raiol. Convenço-­me, igualmente, de que jamais alguém a desnudou como ele, Lourival Serejo, mostrando a beleza física com que foi agraciada por Deus; a convivência fascinante de sua gente; sua cultura, suas festas e tradições; o êxtase proporcionado pela sua flora exuberante; e o encanto de sua fauna, outrora rica em garças brancas e morenas, marrecas e japiaçocas, que ficaram perpetuadas nas minhas lembranças juvenis.

Viana é obsessiva, transparece Lourival Serejo. Quem pelos seus braços foi transitoriamente acalentado, e, muito mais aqueles que do seu ventre saíram, jamais terão cortados os laços de imorredoura saudade ou cordões umbilicais com essa apaixonante cidade. Ela que festeja os lagos que a circundam, que a emolduram, na afirmação do desejo de preservá­-la para sempre, guardando-­lhe as feições de criança, de adolescente e de mulher, de mulher madura, que sabe amar intensamente e se sente envaidecida pela reciprocidade de sentimentos, tanto dos que transitoriamente experimentaram o prazer de sua convivência, quanto daqueles que do seu corpo vieram à luz.

A Viana guardada comigo foi aquela de sessenta anos passados, e continuo mantendo vivos os seus detalhes que puderam ser calados na memória de um menino de quase cinco anos de idade. Tempos depois, já ao princípio da minha adolescência, fui revê-­la, à concessão familiar, porém impulsionado pela saudade, alimentada a partir de quando a deixara. E, assim, em datas intermitentes, porém sempre atendendo aos imperativos do meu coração, por diversas vezes prestei­-lhe a minha perene homenagem.

Mas, em todas essas ocasiões, busquei desembrulhar os fios da meada que muito cedo, mesmo sem saber o que fazia, comecei a tecer. E o fiz desde o subir e descer as escadas do sobrado onde nasci, no meu andar curioso pelas suas ruas estreitas; na apreciação de sua arquitetura colonial, nas visitas às pessoas que escondera em mim, e das outras que fui conhecendo, de modo gradativo; nas orações que havia decorado e que balbuciei nas igrejas, nas primícias de minha vida, enfim, em tudo o mais que me envolveu e continua ainda a me enlear.

Senhoras e senhores, digníssimos confrades:

Perdoem-­me todos, pois já me ia desviando da incumbência que me foi delegada, sob o enlevo de que me vi tomado, além de que já se alongam as horas e não me acho aqui, nesta noite ímpar de Lourival Serejo, para falar de mim. Mas não posso esconder que, ainda moço, ao penetrar nos lagos de Viana, rompendo balsedos ou mururus, deparando-­me com o morro do Mocoroca e vislumbrando a torre da igreja de Nossa Senhora da Conceição, nunca imaginei que eu e Lourival Serejo um dia na vida viéssemos a ter nossos caminhos encontrados, em especial sob testemunho especial dos que aqui acorreram pra homenageá-­lo, com suas presenças e seus contentamentos.

O meu canto de louvação, embora desprovido da suavidade desta voz pouco afinada, que o pronuncia, longe de conseguir combinar os sons de modo harmônico ao ouvido de todos, mas repleto do sentimento de plena afeição que lhe dedico, e de glorificação à nossa terra — o meu canto de louvação, repito, é a Lourival Serejo que, do alto da matriz, com os olhos de quem tudo sabe ver, a memória em que tudo sabe guardar e a sensibilidade de sua alma, nos ofereceu, sobre Viana, a maior obra memorialística de que tenho notícia, sem esquecer dos legados de vários homens ilustres que o antecederem em idêntica manifestação.

Vou me permitir, ao prevalecendo­-me da paciência dos que enriquecem esta singular solenidade, a transcrever um trecho do prefácio de Do alto da matriz, por mim subscrito, privilégio com que fui agraciado pelo seu autor:

A obra, analisada sob o ponto de vista do cotidiano das pessoas, conduz, através de sua leitura, a que seja observada sob três ângulos, aparentemente diferentes, mas que se conjugam de forma sequencial e harmônica. O primeiro deles é o passado, rico na aprendizagem, nas alegrias, nas decepções, nos sonhos, nos desejos, na introspecção, na segurança, enfim, em todos os componentes que vão formando, par a par, a personalidade humana; o segundo é o esquecimento, que destrói o passado, de forma aparentemente propositada, por força da adaptação individual à realidade que o homem passa a viver; e, finalmente, o terceiro, é a relembrança, saborosa ou não, no todo ou em parte, de um dos períodos da existência de cada um, talvez o mais importante deles, que se achava encoberto: o passado esquecido. Adiante, prossigo nos meus comentários:

O livro, pelo conteúdo que encerra, dista de um simples relato. Este, indispensável à composição textual, deu-se com detalhes e na linguagem expressiva de quem o escreveu. Parece até que estou a ouvir o escritor, na sua voz calma, cuidadosa, às vezes um pouco picante, mas que agrada a quem o escuta. A obra é riquíssima no traduzir a alma de uma cidade. Cidade de ruas, de praças, de igrejas, de campos, de sinos badalando, de festas de largo, de músicas, de manifestações folclóricas, de gente indo e voltando, de crianças e diabruras, porém diferente de tantas outras. Porque nela o autor soube colocar alma. Ou soube colocar a terra natal na sua alma. As duas situações se confundem e por isso proporcionam a beleza de estilo, aliada ao conteúdo repleto de minudências, que prendem o leitor, em especial aquele pressuroso no despertar o que lhe estava dormente.

Que mais poderei eu dizer sobre essa obra magistral que ultrapassa os limites da memória restrita de um homem, para se situar na sua história, atual e pretérita, enleada com a história de sua gleba, transmitida com autenticidade irrepreensível de quem soube fotografar o que nenhuma câmera, por mais moderna que fosse, pôde fazê-­lo até agora?

Em Do alto da matriz e no alto da matriz, na torre dessa igreja, que representa também um marco na fundação de Viana, o lugar mais panorâmico da cidade, Lourival Serejo, ao revelar suas próprias circunstâncias, os anos primaveris incrustados na sua alma, a par dessa manifestação memorialística, ofereceu­-nos a visão sociológica da urbe em revivência e de todo o seu derredor.

A obra, ao contrário da morbidez que preenche o fundo de tantas outras similares, sendo um filme que põe a plateia em êxtase, é ela mesma a alegria e a vida, a vida repleta de alegria, que o autor não inventa, pois ali está patente o seu estado de espírito, jovial e prazenteiro. Começa falando-­nos da cidade, em ritmo de quem escreve um poema, sem nada esquecer, até nem mesmo da ladainha dos mortos, em que homenageia os homens e as mulheres que ele conheceu e se despediram deste mundo para sempre, talvez levados por Deus para o repouso no rosário dos lagos crescidos e irmanados pelas águas invernosas.

Da mesma maneira, nela desfiou os tipos populares de sua época, ao falar­-nos, com a graça de suas palavras, na descrição resumida desses personagens, de Chico Beicinho, Januária e Libânia, de Isabel­-sem-­ovo, de Raimundo Xixi e Prisco. E assim, ele vagueia pelos diversos pontos da cidade, passando pelo campo de aviação e pelo cemitério, escutando os sinos da matriz e o som dos alto-­falantes da festa de Nazaré; apreciando as tardes da semana, de segunda a sábado todas gêmeas, e descrevendo as noites escuras repletas de fantasmas e almas perdidas. Penetra na casa onde morou, onde foi plasmada sua formação moral, e, espantado, revê no seu burburinho, dona Belinha e seu Nozor no azáfama do dia a dia, Nezinho, o hóspede mais constante, Cocó, um anjo em figura de tia, os móveis sob a etiqueta de Bubu e seu Boa, o petisqueiro e o guarda­-louças, o santuário e o Cristo entronizado. E se deixa invadir pelas perenes lembranças guardadas nesse repositório, isto é, na casa que ficava e fica no mesmo lugar, na rua Grande, do jeito que era, repetindo suas próprias letras.

Senhor Lourival Serejo:

De modo especial agora eu vos saúdo, porque, refletindo o espírito de filho e irmão exemplar, ligado permanentemente aos vossos familiares, a eles dedicastes um capítulo no vosso Do alto da matriz, e assim demonstrais, à clareza do firmamento a refletir seus raios sobre a paisagem ímpar de Viana, o inequívoco sentimento que vos liga à família. Enaltecestes as qualidades dos vossos pais e em passagem alguma a menor observação fizestes a suscitar dúvidas quanto ao afeto carinhoso que a eles sempre dedicastes. A relação que com eles construístes, na qualidade de obreiro perfeito, bem atesta a qualidade que possuís, transmudada para o vosso cotidiano, a espelhar vossa conduta ilibada no trato com as pessoas que conheceis. Sendo eu, também, um homem apaixonado pela minha família, a partir daqueles que me colocaram neste universo, tomei­-me, simultaneamente, de emoção e prazer, pelo modo carinhoso com que vos referis, em capítulos distintos, mas que se entrelaçam, tal marido e mulher na intimidade de um amor eterno, à imagem perfeita de um casamento não menos perfeito, a seu Nozor e a Dona Belinha, casal exemplar que conheci, bem antes que pisásseis o solo da nossa Viana.

Já nem devo mais comentar vossa obra­-prima, pois, como já disse, ela calou fundo em minha alma, envolvendo-­a pelos benfazejos ares das reminiscências de um mundo mágico que permeou minha meninice e parte da minha juventude. E assim, confesso, convosco desejaria estar na torre da matriz, olhando para a nossa cidade, a saudar os que chegam, dizendo-­lhes bem­-vindos, e os que se despendem, com um até breve, tal como vos expressastes às primeiras páginas de Do alto da matriz, na parte introdutória, sob vossa assinatura.

Senhoras e senhores, caríssimos acadêmicos:

Desde tempos imemoriais Viana vem cultivando tradições, assentadas em expressões transmitidas sob inúmeras formas, todas originadas da singeleza das manifestações populares. Traduzem o sincretismo formado por culturas e raças, anos a fio conservado na pureza de crenças, lendas e festejos, mas que o desenvolvimento socioeconômico avassalador, ao alcançar a Baixada Maranhense, um casulo que se supunha intocável, tem contribuído para seu desvirtuamento. Ainda assim, algumas expressões do cancioneiro português resistem às ameaças à sua autenticidade, a despeito das gentes que chegam e ali se assentam, sem o menor compromisso com os usos e costumes da terra que as acolhe.

Lourival Serejo preocupou­-se em registrar uma das representações do populário, das mais importantes, até porque, embora ainda salva dos perigos das descaracterizações, é também, tal como as demais, suscetível de ser deformada. Trata-­se do Baile de São Gonçalo, cujas letras de cantorias, fotografias de encenações e partituras várias integram o livro que publicou sob o mesmo título. Aí o autor registra relatos e acompanha pessoalmente o desenrolar das homenagens prestadas ao santo de Amarante. Neste ponto, segue ele os exemplos deixados pelos nossos patrícios Celso Magalhães e Antônio Lopes, ambos intelectuais de renome. Aquele, autor de A poesia popular brasileira, desenvolveu, no Brasil, os primeiros trabalhos de caráter científico acerca do folclore. O segundo, Antônio Lopes, que escreveu A presença do romanceiro, o mais importante estudo de pesquisa que reúne setenta e uma versões de trinta e três romances — poesia tradicional que atravessa os séculos através da oralidade — foi folclorista da cepa de Sílvio Romero.

Senhor Lourival Serejo:

Eu vos saúdo novamente, ilustre ocupante da Cadeira patroneada por César Marques, posto que me escolhestes como guia para conhecerdes os meandros desta Casa, eu vos saúdo, repito, como se também fosse eu o Guia de um Baile de São Gonçalo:

Quando entrei neste salão
Foi com imensa devoção
As flores que trago comigo
Minhas companheiras são:
O Cravo e a Rosa
O Girassol e a Borboleta
O Manjericão e a Sempre-viva.
Esta por ser derradeira,
O Alecrim e a Laranjeira.
Esta referida flor
Que fala por derradeiro
Agora apareçam em figura
Falando o Cravo primeiro.
Venho eu, que sou o Cravo,
Flor de toda ousadia,
Venho trazer este ramo
A São Gonçalo neste dia.
Oh! Que palma tão formosa
Que hoje veio aparecer.
Agora torno a dizer:
Não há outra mais formosa,
Siga-se agora e fale,
A flor da bela Rosa.
Venho eu, que sou a Rosa,
Que o Cravo me chamou,
A chamar o Girassol
Foi quem Deus alumiou.
E porque ele rogou

A nos dar a caridade,
Vamos fazer este baile
Com muita felicidade.
Com alguma brevidade
Queremos fazer melhor,
Siga-se agora e fale
A flor do Girassol
Venho eu, o Girassol,
Que a Rosa me deu o sinal
A chamar a Borboleta
E a ela publicar:
Eu também sou uma flor
De toda moderação.
Aceitai meu São Gonçalo,
De todo meu coração.
Pedimos a São Gonçalo
Que a promessa seja aceita,
Siga-se agora e fale
A flor da Borboleta.
Venho eu, a Borboleta,
Que o Girassol me ofereceu
A São Gonçalo de Amarante
Para companheiro seu
E a vós que prometeu
Dar saúde aos doentes,
Vamos fazer um baile
Que admire toda gente.
Pedimos a São Gonçalo
Que nos dê animação.
Siga-se agora e fale
A flor do Manjericão.
Venho eu, o Manjericão,

Como um raio de formosura.
De todas as flores
Eu faço a melhor figura.
E a Virgem pura
Que no mundo deu abalo
Eu com vós falo
É ajuda decisiva.
Siga-se agora e fale
A querida Sempre-viva.
Venho eu, a Sempre-viva,
Flor mais bonita e galante.
Venho trazer este ramo
A São Gonçalo de Amarante,
Por ele ser muito constante,
Que todos dizem assim.
Siga-se agora e fale
A flor do Alecrim.
Venho eu, o Alecrim,
Flor do mundo em geral
O nome que trago no meio
É São Gonçalo exemplar.
Por ele devemos chamar
Quando for a ocasião,
Para que nos acuda sempre
Com a sua proteção.
Querida assim por ser verdadeira
Siga-se agora e fale
A flor da Laranjeira.
Venho eu, a flor da Laranjeira,
Ficando por derradeiro.
São Gonçalo de Amarante
É santo de Deus verdadeiro.

Vós é muito desejado
Que a todos dizem viva
Este Santo venerado
Que por Deus é abraçado
Senhor guia e dançantes
Queremos este baile formado.

Após diversas passagens e cantorias, já ao encerrar o Baile, vai, novamente, a manifestação do Guia:

Está terminado o baile,
Está acabada a função,
Queremos do nobre auditório
Dos nossos erros o perdão.

Confrade Lourival de Jesus Serejo Sousa:

Já que me preferistes como guia, eu vos dou de entrardes nesta Casa, mas entrai portando o vosso bornal recoberto de pedras cintilantes a conduzir a expressão do vosso talento. Entrai, também, com imensa devoção, trazendo em vossas mãos o Cravo e a Rosa, o Girassol e a Borboleta, o Manjericão e a Sem pre­viva, o Alecrim e a Laranjeira, do vosso e do nosso baile vianense de São Gonçalo, flores com que vindes perfumar a vossa imortalidade.

 

Textos Escolhidos

A LEITURA COMO VEÍCULO DE TRANSFORMAÇÃO

Não tenho muita preferência pela literatura oriental, talvez pelo estilo e pelos temas de suas histórias, além de que seus autores são geralmente desconhecidos. Por recomendação de um livro sobre livros e pelo filme com o mesmo nome, o qual  já havia assistido, há algum tempo, procurei ler o romance de Daí Sijie, Balzac e a Costureirinha chinesa,  edição de 2007, da editora Objetiva.

O romance de Dai Sijie tem a força da raiz autobiográfica. O autor viveu três anos em um campo de reeducação rural, no tempo da desastrosa política de Mao Tsé-tung, denominada de Revolução Cultural, iniciada no fim da década de sessenta.

Os pontos essenciais que se destacam no romance do escritor chinês, radicado na França, são a busca pelo prazer da leitura e o poder transformador do livro.

Dois rapazes, filhos de famílias estruturadas econômica e culturalmente, moradores da cidade de Chengtu, capital da província, são mandados para uma aldeia,  de nome Fênix Celestial, localizada nas montanhas, onde passam a fazer os mesmos trabalhos dos aldeões, lidando com a plantação e colheita de arroz e exploração de cobre.  Suas atividades são fiscalizadas e cobradas por um líder local. A permanência deles naquela aldeia era por tempo indeterminado, o que podia significar a vida inteira. Seus estudos foram interrompidos e seus sonhos estancados aos 18 anos de idade.

Naquela imensidão isolada, descobriram que um terceiro rapaz reeducando, chamado de Quatro-olhos, detinha um tesouro secreto, escondido de todos, com medo da repressão política: uma sacola de livros de literatura de escritores ocidentais. Mas o rapaz nega compartilhar com eles a leitura daqueles livros. Com muito custo, empresta-lhes um romance de Balzac: Úrsula Mirouët.

Por essa mesma ocasião, conhecem uma jovem que vive com o avô, o único alfaiate da região. Passam a chamá-la de a Costureirinha. Os dois jovens apaixonam-se por ela, mas só o amor de Luo é correspondido.  Pela inteligência e interesse que ela revela, resolvem educá-la com a leitura de livros. Ela se embevece com as histórias que contam Luo e seu amigo, o narrador. Até o chefe da aldeia se interessa por essas histórias.

O amigo de Luo, antes de devolver o livro a Quatro-olhos, copia alguns trechos que considera  mais tocantes, no avesso de um casaco de couro. A Costureirinha se encanta com a leitura  daquelas passagens de Balzac, feita pelos seus amigos reeducandos.

Tempos depois, às vésperas do retorno de Quatro-olhos, os jovens furtam a sacola deste e passam a ler todos os livros ali reunidos, dos mais renomados autores: Victor Hugo, Stendhal, Tolstoi, Gogol, Dostoievski, Dumas, Flaubert, Baudelaire, Romain Roland, Rousseau, Dickens, Kipling e Emily Brontë. Ao avaliar esse tesouro, Luo exclamou: “Com estes livros, vou transformar a Costureirinha. Ela nunca mais será uma simples montanhesa”. Esse fenômeno transformador ocorreu com o próprio narrador, após a leitura do primeiro volume do romance Jean-Cristophe, de Romain Rolland: “Para mim, era o livro sonhado: ao término da leitura, nem a maldita vida nem o maldito mundo poderiam ser como antes.”

Realmente, foi o que aconteceu. Com essas leituras, a Costureirinha transformou-se em outra pessoa e resolveu romper com aquele mundo reduzido. Decidiu deixar o pai, a namorado e o amigo, e ir embora para um mundo grande, capaz de germinar seus sonhos.

Nessa obra, o autor demonstra quanto tem o livro de libertador e transformador. Só a leitura daquelas obras faziam os jovens esquecerem o exílio a que foram submetidos. Para a Costureirinha, sua personalidade, até então simplória, descortinou um futuro diferente do que aguardava sua permanência naquele lugar. Com a tomada de consciência e a conquista da autoestima (Ela me disse – revela o namorado Luo – que Balzac fez com que compreendesse uma coisa: a beleza de uma mulher é um tesouro que não tem preço).

Em resumo, o romance de Dai Sijie trata de uma história de amor e da educação pelos livros. O amor e a leitura são a grande lição dessa obra. A lição de quanto os livros podem transformar uma pessoa.  È vero.

 

O MÁGICO DE MACONDO

Certos escritores, assim como certos  artistas que tanto bem fazem à humanidade não deveriam morrer. Mas, de repente, essa expectativa de imortalidade se rompe e nos deparamos com a realidade tão distante da ficção: a morte chega e tudo se acaba. O sólido se desmancha no ar. Só ficam para a eternidade as obras e as lições de cada um.

Não custava nada o destino conferir a Gabriel García Márquez a longevidade dos seus personagens de Macondo. Se ele fosse um Buendía viraria borboleta e sairia voando pelo seu espaço mágico.

A vida de Garcia Márquez, narrada por ele mesmo, em sua obra Viver para contar, é um repositório de aventuras, ousadias e sucessos.

Como García Márquez, possuidor de uma timidez de codorna, conforme ele mesmo avaliou-se em sua autobiografia, como pôde ele ter obtido tanto sucesso? Será num passe de mágica ou de sorte? Com certeza, não foi assim. Toda a consagração de Gabo foi o resultado da dedicação exclusiva ao ofício de escrever e do cultivo do seu talento. Como um lance sobrenatural, ele percebeu que deveria largar tudo e viver exclusivamente para escrever. Só assim seria construído o escritor que desejou tornar-se. Os passos e as dificuldades para chegar à glória são esclarecidos, com detalhes, em Viver para contar.

Não há dúvida de que o pináculo da literatura fantástica, na América Latina, é o romance Cem anos de solidão, embora não tenha sido o pioneiro nessa categoria. Por esse mérito é que o crítico americano Ilan Stavans denominou essa obra de Bíblia da América Latina. Desde seu lançamento, em 1967, esse romance revolucionou a literatura neste continente e em todo o mundo, trazendo à tona o poder da ficção, força que se sente desde o nocaute da primeira frase: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Quem conhece  Amor em tempo de cólera, Cem anos de solidão, Crônica de uma morte anunciada, Os funerais da Mamãe Grande, O general e seu labirinto, Memórias de minhas putas tristes, O outono do patriarca e Relato de um náufrago, dentre outras obras de García Márquez, pode aquilatar o grau de criatividade do escritor que deu ao realismo mágico o melhor tratamento literário.

Coincidentemente, eu estava em Havana, no dia seguinte à morte dele e, ali, tive a oportunidade de sentir, pelas páginas do jornal Granma a repercussão daquele fato, inclusive com a divulgação de um artigo do próprio Fidel Castro, em louvor da genialidade do falecido, seu amigo pessoal e admirador.

Pelo poder de sua ficção transgressora do possível, é que optei por chamá-lo de Mágico de Macondo e não de Aracataca, sua terra natal, perdida nas entranhas da Colômbia. Afinal, como já foi dito por alguém, Macondo é um lugar em que cabe todos os lugares do mundo. Naquele cenário encantado, as gerações dos Buendía viveram sucessivas aventuras contadas e inventadas pelo imaginário popular. O ponto mais remoto dessa árvore genealógica é o casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán. São sete gerações, nas quais destacaram-se dezessete Aurelianos.

Na geografia imaginária da literatura latino-americana, despontam três lugares que a fantasia dos seus criadores cravou num mapa em que o leitor é compensado pelos tesouros ali existentes. São eles: Comala, em Pedro Páramo, de Juan Rulfo; Santa Maria, em Junta-cadáveres e outras obras, de Juan Carlos Onetti; e Macondo, em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Mesmo sendo real, Belo Monte, em Canudos, como descrita por Vargas Llosa, em A guerra do fim do mundo, pode ser alinhada entre esses lugares fantásticos.

As homenagens e os elogios lançados, por toda parte, à memória de Gabriel García Márquez são merecidos pelo que ele representou com seu talento, para as letras da América Latina, assegurando aos seus leitores momentos de lazer e aprendizagem pelo universo da ficção.

HUMBERTO DE CAMPOS REDIVIVO

Há poucos dias, em breve palestra sobre Coelho Neto, no Café Literário do Centro de Criatividade Odilo Costa, filho, fiz, logo de início, esta pergunta: É possível reabilitar Coelho Neto?  A resposta só podia ser não, apesar de tantas e tantas tentativas feitas por intelectuais como Brito Broca, Alfredo Bosi etc.  Essa mesma pergunta vale para Humberto de Campos, com a mesma resposta.

O destino de Coelho Neto e de Humberto de Campos se entrelaça pela amizade, pela morte e pelo esquecimento a que foram condenados. Morreram no mesmo ano – 1934 –, apenas com uma semana de diferença. Ambos fizeram, por consequência, neste 2014, 80 anos de falecimento. Coelho Neto faleceu com 70 anos de idade, enquanto Humberto de Campos tinha apenas 48 anos. O autor de Turbilhão ainda faz, neste ano,  150 anos de nascimento.

Eis que, para surpresa dos admiradores de Humberto de Campos, surge, agora, uma publicação especial de algumas obras suas para comemorar a passagem dessa data.  A notícia lida no Caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo, de 6 de dezembro passado, informa o lançamento de quatro volumes da Série Humberto de Campos – Renascendo 80 anos depois, pela editora Tinta Negra. A coleção está acondicionada numa caixa e compõe-se dos seguintes títulos: a) Diário secreto; b) Poesias completas; c) Contos satíricos do Conselheiro XX; e d) Contos e crônicas. O lançamento ocorreu na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro.

Essa publicação reabilita Humberto de Campos do esquecimento em que dormitava. Não importa que seja fugaz. Para marcar essa data, não haveria melhor presente à memória de quem tão bem soube trabalhar a memorialística em nossa literatura.

Depois de sua morte, Humberto de Campos mereceu o privilégio da publicação de sete biografias, o que é raro para um escritor brasileiro. Refiro-me às biografias que conheço e que se encontram em minha biblioteca. São elas: a) Picanço, Macario de Lemos. Humberto de Campos. Rio de Janeiro: Minerva, 1937; b) Vieira, Hermes. Humberto de Campos e sua expressão literária. São Paulo: Cultura Moderna, sem data; c) Reis, Roberto; Carvalho, Lúcia Helena;  Souza, Roberto Acízelo de. O miolo e o pão. Rio de Janeiro: EDFF – INL, 1986; d) Lebert, Maria de Lourdes. Humberto de Campos. São Paulo: Melhoramentos, sem data; e) Ramos, Clóvis. Ano centenário de Humberto de Campos. São Luís: Sioge, 1986; f) Campos Filho, Humberto de. Irmão X, meu pai. São Paulo: Lúmen Editorial, 1997; g) Coelho, Amparo. Humberto de Campos, evocações de uma vida. São Luís, 2005.

Aqui, no Maranhão, em 2009 e 2010, o Instituto Geia teve a iniciativa de editar três obras de Humberto de Campos: Memórias, Memórias InacabadasDiário Secreto. Uma atitude que já tive oportunidade de elogiar em crônica anterior. As obras completas de Humberto de Campos foram lançadas pela Editora  W. M. Jackson, em 1945, com sucessivas reedições.  Depois saíram alguns títulos esparsos. O Diário Secreto, em dois volumes,  teve sua primeira edição patrocinada pela editora da Revista Cruzeiro e só era encontrado em sebos. Desde a publicação do Geia, os leitores tiveram oportunidade de conhecer a mais polêmica das obras do escritor maranhense.

Nossos cursos de Letras deveriam insistir na pesquisa e na divulgação das obras de Coelho Neto e de Humberto de Campos, pelo valor que encerram, como fez agora a professora Aline Haluch, responsável por essa publicação que ora se anuncia, depois de dedicar-se, em tese  de doutorado, ao estudo da revista ilustrada A maçã, editada pelo autor de  Sombras que sofrem.

Volto a insistir, embora de efeito breve, essa publicação revive  Humberto de Campos,  em seus 80 anos de falecimento.

Iconografia

Aguarde Atualização…