Ocupante
Antonio Martins de Araújo
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Cadeira
03
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Data da Eleição
10.07.2003
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Data da Posse
22.08.2003
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Recepcionado por
Jomar Moraes
Biografia
Filho de Antônio José de Araújo e Edith Raposo Martins Araújo, nasceu a l° de agosto de 1932, numa segunda-feira aziaga, em São Luís do Maranhão, na Rua dos Afogados, esquina com a do Ribeirão, já de janelas abertas para o Teatro Artur Azevedo, a cujos espetáculos teatrais assistiu (todos!) entre seus cinco e treze anos de idade, levado pelas mãos de sua madrinha e mãe de criação, Edith Barbosa Pinto, que vendia, na caixa do Teatro, cafezinho e mingau de milho para os artistas das companhias visitantes e para os espectadores durante os intervalos das peças.
Essa mordomia só foi interrompida por dois anos com o advento da 2ª Guerra Mundial, em 1938, quando seu pai, proprietário da Mercearia Gaúcha, sita na testeira do Ribeirão, foi obrigado a passar o ponto a fim de honrar as dívidas para com seus fornecedores, em decorrência de um calote de 30 contos de réis da Prefeitura de então, que deixou de descontar em folha o fornecimento que ele fazia aos garis da capital. Enquanto o pai providenciava vender seus bens, morou em Viana por dois anos, ocasião em que, pela manhã, estudava numa escola municipal da Rua Grande, e, à tarde, um velho mestre-escola leigo lhe orientava o preparo das lições e exercícios ali passados.
Em agosto de 1947, com 15 anos de idade, ainda cursando a 4ª série do antigo ginásio dos Maristas, ao lado da Sé, foi convidado pelo irmão Eloy José, diretor do estabelecimento, a ministrar, à noite, aulas de Português e História do Brasil, na Escola Champagnat, por aqueles mantida, aos alunos pobres a fim de poderem prestar concurso para o exame de admissão ao ginásio.
Adolescente, participou de várias agremiações literárias em São Luís, como o Grêmio Cultural Coelho Neto, que se reunia aos sábados nos Maristas; do Centro Cultural Graça Aranha, que se reunia nas noites de quinta-feira na mansão de Eder Santos, na Rua do Sol, esquina com a Praça Deodoro. Nos anos 50, foi presidente do Sindicato dos Professores Secundários de São Luís por vários anos. Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia, sediada no Rio de Janeiro, da qual é o atual presidente.
Entre 1952 e 1964, com exceção dos mantidos por ordens religiosas, praticamente lecionou em todos os estabelecimentos secundários de São Luís do Maranhão; fundou, em 1959, pela Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, na Praça do Lira, onde funciona hoje a E.M. Sousândrade, o Ginásio Getúlio Vargas, que funcionava à noite. Daí foi guindado pelo governador Newton de Barros Bello a diretor do Liceu Maranhense, onde era catedrático de Língua Portuguesa. Fundou e dirigiu o jornal do Liceu Maranhense, que circulava encartado no Diário Popular.
Em 1958, pela antiga Faculdade de Filosofia do Maranhão, licenciou-se em Letras Neolatinas, ainda licenciando, começou a lecionar, na graduação dessa Faculdade, Literatura Brasileira e Língua Portuguesa. Bacharel (1963) pela Faculdade de Direito de São Luís.
Transferindo-se com a numerosa família para o Rio de Janeiro em 1964, logo começou a lecionar na antiga Escola Técnica Federal, hoje CEFET (1964), na Escola Técnica de Comércio Rio Grande do Sul (1964-65), na Escola Naval (1966-69), na Faculdade de Letras da Universidade Gama Filho (1965-66). Coordenou os três primeiros cursos de preparação para o Exame de Madureza (antigo artigo 99) mantidos pela Universidade de Cultura Popular, escrevendo, editando e ministrando aulas de português por quatro anos. Inicialmente, na antiga TV Continental, canal 9 (1966-67) e (1968-69), com o patrocínio da Shell, na TV Tupi, Canal 6, cujas aulas eram reproduzidas em cerca de 40 cidades brasileiras. Ininterruptamente, lecionou na Escola de Teatro Martins Pena, entre 1966 e 1972, História do Espetáculo e Impostação da Voz.
Doutor em Letras Vernáculas (1986) pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em 1970, começou a lecionar Língua Portuguesa na graduação e, depois, na pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde orientou várias dissertações de mestrado. Era representante eleito do Centro de Letras e Artes (CLÃ) no Conselho Permanente de Pessoal Docente (CPPD), quando se aposentou em 1997.
A convite, em 1989, encerrou a 18ª Semana de Estudos de Língua Japonesa, na Universidade Católica de Nanzan (Nagoya-Japão), pronunciando a conferência Breve notícia da ortografia portuguesa – Dos labirintos da scriptologia medieval aos prognósticos do próximo século, logo editada em japonês pelo periódico Academia daquela universidade.
Ainda a convite, em 2001, pronunciou duas conferências no Curso de Dicionarística promovido pelo Dr. Telmo Verdelho (Universidade de Aveiro), no Convento de Arrábida em Portugal, no Ano Internacional do Livro. Uma, sobre as edições críticas que subsidiaram o Vocabulário do português medieval, do saudoso lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha; outra, confrontando a estrutura do Dicionário poético, de Cândido Lusitano, pseudônimo de Filinto Elísio, (Lisboa: Simão Tadeu Ferreira, 1794) com o Dicionário analógico da língua portuguesa (Ideias Afins), do goiano Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1950).
Tem sido intensa a produção ensaística de Antônio Martins nestes últimos anos. Vem ele regularmente publicando estudos de Filologia e de Crítica Literária em periódicos portugueses, alemães, japoneses e brasileiros. No Brasil, regularmente colabora na revista Confluência, do Liceu Literário Português; na da Academia Brasileira de Filologia, da qual é um dos diretores. Vem, outrossim, participando de Miscelâneas em homenagem aos grandes nomes da Linguística, como nas de Luciana Stegagno Picchio, de Celso Cunha e de Adriano da Gama Kury.
Como presidente executivo, em setembro de 2007 promoveu na recém-inaugurada sede do Centro de Cultura Anglo-Americano (CCAA) do Rio de Janeiro, o Congresso Internacional de Língua Portuguesa, Filosofia e Literaturas de Língua Portuguesa, que reuniu mais de 300 universitários na plateia, e, além de vários educadores nacionais, trouxe diversos especialistas de fora, a saber 16, de Portugal; dois do Japão; dois da Suíça; dois da Espanha e um dos EUA, especialistas todos em nosso idioma e/ou nas literaturas desse idioma.
Com o excelente material, em primeira mão recolhido no evento supracitado, elaborou dois importantes projetos para 2008: os de ministrar dois cursos de extensão universitária em nível de mestrado, com 75 horas-aula e 25 de pesquisa orientada, sobre A Língua Portuguesa no Mundo Globalizado do Terceiro Milênio. Um, em março, na Casa de Cultura Josué Montello; outro, em abril, em uma universidade da cidade de Águas Claras, próxima de Brasília.
Convidado para participar, como membro do Conselho Científico, do Congresso Internacional de Estatística promovido pela Universidade de Lisboa, em convênio com a de Chemnitz (Alemanha) em maio de 2008 naquela, ali pronunciou uma conferência sobre Os Empréstimos Eslavos no Português do Brasil; depois do que falou sobre Peculiaridades Léxico-Semânticas do Português do Brasil, em Universidades de Aveiro, Braga, Coimbra, Lisboa e Porto.
De sua extensa bibliografia citam-se: Arthur Azevedo: a palavra e o riso. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 1988; A herança de João de Barros e outros estudos. São Luís: Edições AML, 2003; O menino do Ribeirão. São Luís: 2013; O peito do pelicano. Curitiba: Appris, 2014.
Especialista dos mais autorizados na obra do grande comediógrafo maranhense, Antonio Martins organizou e publicou, com crítica textual e introduções eruditas, 6 volumosos tomos do teatro completo de Arthur Azevedo, pela INACEN/FUNARTE no período de 1983 a 1995. E ainda desse mesmo autor, reeditou Carapuças/O domingo/O dia de finados. Rio de Janeiro: Presença, 1989; Contos fora da moda. Rio de Janeiro: Alhambra, 1982; Os melhores contos de Artur Azevedo. São Paulo: Global, 2001.
Em 24 de abril de 2014 recebeu em solenidade na Academia Maranhense de Letras o Título de Doutor Honoris Causa pela Univesridade Estadual do Maranhão.
Bibliografia
Aguarde Atualização…
Discursos de Posse
Exmo. Sr. Presidente Jomar Moraes, na pessoa de quem saúdo os membros desta Casa,
Autoridades presentes,
Exma. Sra. Dona Helosine Moreira Lima Amaral de Mattos,
Estimados familiares do padre João Mohana,
Senhores e Senhoras:
Sejam minhas primeiras palavras para agradecer. Em primeiro lugar, ao Presidente Jomar Moraes, que não só me incentivou a concorrer à Cadeira nº 3 desta Academia e muito laborou para minha eleição; mas também agradecer aos meus ilustres pares, que me aceitaram como um dos seus. Sem todos eles, eu não poderia estar aqui e agora. Em segundo lugar, a todos os meus familiares e amigos aqui presentes. Sem vocês, eu não usufruiria do privilégio deste ágape, desta confraternização, desta comunhão de ideias e alegrias.
A norma regimental das academias recomenda aos recém-eleitos que, no dia de sua investidura oficial na Cadeira que vão ocupar, façam o elogio dos seus predecessores. Como esta Cadeira da Casa de Antônio Lobo já foi exornada pelos nomes ilustres do poeta Antônio da Costa Gomes e de seu irmão contista João da Costa Gomes, do poeta Francisco de Assis Garrido, do humanista João Miguel Mohana e do pediatra e poeta Odorico Carmelito Amaral de Mattos, achei por bem cumpri-la, falando de seus dois últimos ocupantes, não sem uma breve referência à maranhensidade e ao catolicismo soft de seu patrono Artur Nabantino Gonçalves Azevedo.
Artur nasceu a 7 de julho de 1855 no sobrado da rua do Ribeirão que faz esquina com o beco do Monteiro. Distante dois anos apenas do sesquicentenário de seu nascimento, impõe-se lembrar que ele é um dos mais importantes poetas satíricos e o mais profícuo dramaturgo de nosso país. Além dos versos satíricos do semanário O Domingo, fundado e mantido por ele em sua juventude maranhense, aqui publicou, em 1871, aos 17 anos, pela tipografia de O País, o livro Carapuças. Sua obra de estreia; e, 5 anos depois, já no Rio de Janeiro, pela Acadêmica, O dia de finados. Ambas satirizavam os usos e costumes desviantes das duas cidades onde foram editadas. A primeira se fechou com uma violenta sátira à maledicência dos desocupados da São Luís de então; a última assestou baterias contra o antigo mau costume de transformar os cemitérios cariocas em lugares de piqueniques e carraspanas nos dias dedicados aos mortos.
Depois disso, nunca se interessou ele em reunir em livros seus muitos versos. Deixou-os sempre espalhados pelos mais de 40 periódicos em que colaborou à época. Após seu falecimento, aos 53 anos, em meio a intensa produtividade dramática e jornalística, não foi fácil a dois amigos e admiradores seus reunirem as únicas coletâneas de poesias suas com o fim de angariarem fundos com que socorressem a numerosa e desamparada família que deixou. As Rimas de Arthur Azevedo, organizadas por Xavier Pinheiro, saíram em 1909 pela editora América, do Rio de Janeiro; seus Sonetos e peças líricas, organizados por Júlio de Freitas, em 1910, pela Garnier, livraria multinacional de então.
Em face de haver ele dedicado a maior parte de seu talento à sátira e ao riso, pode-se muito bem pensar ter sido Artur desprovido de qualquer religiosidade. Certa vez, contando-lhe o que eu vinha escrevendo sobre Artur Azevedo, meu querido amigo e mestre padre João Mohana, fiel a seus princípios teológicos, confidenciou-me que, apesar de ter aceito a investidura na Cadeira nº 3, que passo a ocupar, “nada tinha a ver com Artur Azevedo.” Mal sabia ele, que, além de uma vida plena de atos dignificantes, nosso patrono também cultivava, a seu modo, seu cristianismo. No seu velório, muitas viúvas desvalidas, que dele, incógnito, recebiam uma ajuda financeira para se manterem dignamente, foram levar-lhe o agradecimento de suas orações. Além de tantos outros gestos, deu-nos ele um testemunho explícito disso nestes versos, não sem razão, escolhidos alexandrinos por abordarem tema tão transcendental. Foram escritos na sexta-feira santa de 1895 e reproduzidos por Xavier Pinheiro à p. 115 de sua coletânea de Rimas, a que já me referi:
Não se apagou ainda a intensa luz divina
Que há séculos brilhou nos braços de uma
cruz. Fortalece-se a fé, espalha-se a
doutrina E continua quente o sangue de
Jesus!
Esta uma pequena amostra da lírica de Artur. Com a bagagem afim de Odorico Amaral de Mattos ocorreu fato semelhante. Dois anos depois da Semana de Arte Moderna, de São Paulo, com 20 anos de idade, estreou ele nas belas-letras em São Luís, com A nau que vai à vela. O título foi colhido ao poema Crisfal, do quinhentista português Bernardim Ribeiro. Aí, irrepreensíveis sonetos decassílabos coexistem harmonicamente com outros metros, ora rimados, ora livres. Suas linhas temáticas dominantes são o amor, o mar e a natureza.
A intensidade com que se dedicou às ciências da saúde infantil fê-lo dar alguma trégua às musas por longo tempo. Não de todo, porque, vezes havia, entre uma consulta e um estudo de caso, elas lhe batiam à porta. Ele as recebia comovido e ia deixando por sobre a mesa do consultório o testemunho dessas visitas furtivas. Esses versos de amor e ternura à amada e à sua cidade natal, iam sendo recolhidos carinhosamente pela esposa de toda sua existência, a senhora Helosine Moreira Lima Amaral de Mattos. Essa segunda coletânea, publicada por iniciativa da esposa, já na São Luís fin-de-siècle de 1998, prefaciada pelo escritor João Mohana, chama-se Poema da cidade que era assim, e seu título já diz tudo. Era, já não é mais, como ele a viu e viveu. Por isso, embora aborde outros temas líricos, a obra leva às últimas consequências o tema proposto pelo título.
Para que todos entendam o porquê desse tópico, preciso situar-me no final dos anos trinta e início dos quarenta. É indispensável fazê-lo. Naqueles anos, passava eu todas as tardes úteis na escola particular da professora primária Maria de Lourdes Garrido, que ficava cinco portas à direita da casa à direita do Ribeirão, na rua dos Afogados, onde nasci. Era ela irmã do poeta Francisco de Assis Garrido, inquieto e saudoso membro desta Casa. Depois de minha própria mãe, que era também professora formada, foi Maria Garrido quem me ensinou a ler e me iniciou nos segredos da educação. De um dos seus ditados diários, extraídos aleatoriamente da famosa Antologia nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, ficou-me na memória um trecho de O Torrão Natal, linda página de amor do romancista Joaquim Manuel de Macedo à sua Itaboraí. Tantas vezes reli e analisei esse trecho, que o guardei de cor. Dizia assim:
Um célebre poeta polaco, descrevendo em magníficos versos uma floresta encantada do seu país, imaginou que as aves e os animais ali nascidos, se por acaso longe se achavam quando sentiam aproximar-se a hora da sua morte, voavam ou corriam, e vinham todos expirar à sombra das árvores do bosque imenso onde tinham nascido.
Nunca localizei a obra nem procurei identificar o tal poeta polonês que fixou o estranho fato, mas, nesse pequeno passo, desde cedo entendi que, se até as aves e os animais irracionais sentem a dor da viagem, a angústia do retorno, ideias latentes no termo nostalgia, o que não dizer dos homens e das mulheres, dotados que são de sensibilidade e gratidão, que, como eu, são obrigados, pelos mais variados motivos, a separar-se do seu torrão natal?
Em terra distante, obrigado a lutar com armas desiguais para vencer a feroz concorrência, quanta vez essa pessoinha é assaltada por um banzo irresistível. A cada vez que atacam essas síndromes de alma dilacerada, então, sempre se morre um pouquinho, sem se saber se está morrendo. Quando é de todo impossível o retorno definitivo, e em vida útil, eis que lhe afloram então os mais variados mecanismos de compensação psicológica. Fica-se horas perdidas ao telefone escutando a música da voz dos parentes e amigos; faz-se preparar os pratos típicos da terra para apaziguar as ganâncias da gula; recontam-se para os filhos e netos, pela centésima vez, histórias vividas ou escutadas; ou então, quando se é dotado da centelha divina, escreve-se com o próprio sangue uma Canção do Exílio, para gregos e troianos repetirem e parodiarem pela vida afora.
Meus senhores, minhas senhoras, não se tem saudades de quem ou daquilo a que não se ama, e não se ama a quem ou àquilo que não possui uma escala de valores positivos, quaisquer que sejam eles. Ora, ao contestar os ímpetos separatistas do jornalista Oscar Rosas, que, em sua seção Janela do Espírito, desejava separar a literatura do Sul, da do Norte, Artur mostra que seu amor ao Maranhão, com ser gratuito, não deixou de ser também pragmático. Escutemo-lo:
Amo apaixonadamente o meu torrão natal, mas amá-lo-ia da mesma forma, se não houvesse nascido ali um único literato. Digo até, sem receio de ofender a suscetibilidade de quem quer que seja, que, produção por produção, eu quisera mais algodão que poesia.
Esta joia está na seção Flocos, do Correio do Povo (RJ, 24/9/1890). Noutra seção, A Palestra, mantida em O País (RJ, 14/12/1903), Artur rememora com saudades a figura de Sotero dos Reis, e sublinha a feição colonial daquela praça que seria batizada com o nome de João Lisboa. Escutemo-lo: “O Convento do Carmo, edificado em 1627, em cujo pavimento térreo funcionava o Liceu (ai! o Liceu! que saudades!) concorria para dar ao local um tom melancólico e patriarcal, muito de colônia!” Note-se que a locução adjetiva final não é pejorativa, e sim, valorativa, com o sentido de colonial.
Nesse artigo, Artur lançou a campanha para a construção da estátua de João Lisboa, moldada por Rodolfo Bernardelli, na praça que tem hoje o nome do grande prosador brasileiro. Distante ainda nove anos do evento, propôs-lhe a data do primeiro centenário de nascimento do escritor. Assim se expressou numa daquelas recaídas do banzo maranhense a que me referi no início desta fala: “Espero em Deus assistir, no dia 22 de março de 1912, a inauguração da estátua de João Lisboa, e mostrar ao Largo do Carmo, estes cabelos brancos que ele não conhece”.
Artur não viveria o bastante para retornar a São Luís, uma segunda vez, depois que se mudou para o Rio de Janeiro. A primeira e única fora para orientar o inventário paterno. Não viveria o bastante para exibir no largo do Carmo a beleza dos seus cabelos encanecidos. Justo a 22 de outubro de 1908, cinco anos após a formulação daquele anelo, os desígnios divinos chamaram-no para o céu. Um mês antes de seu chefe e amigo Joaquim Maria Machado de Assis, a quem substituiu efemeramente na direção da Secretaria de Governo onde pontificou por tantos anos. Estes, em breves traços, a via sacra da saudade maranhense palmilhada por Artur Azevedo.
Na apresentação da segunda coletânea de versos de Odorico, o escritor João Mohana, com a elegância e o olhar arguto que o caracterizaram, já mostrou que a saudade é uma recorrência temática da obra por ele prefaciada. Ouçamo-lo:
De ponta a ponta do Poema da cidade que era assim, a saudade se infiltra, se esconde e de momento a momento, mostra o rosto, pronuncia o próprio nome, ou dilui a realidade na penumbra de reminiscências (p. 7-8).
Dificilmente outro escritor conseguiria alcançar a elegância de tal síntese conceitual. Os quinhentos e quarenta e quatro versos, redondilhos maiores à moda de cordel, desse poema recontam uma viagem peripatética ao passado que ele viveu na Ilha dos Amores. Vejamos como o diz: “Quero andar solto nas ruas/ onde não há multidões/ […] assobiando canções/ dos tempos idos, de outrora,/ baixinho como quem ora […]” (p. 29). O que o poeta quer é apreender o instante mágico da infância que não voltará mais, quer sentir, como diz explicitamente à p. 58, a “São Luís no tempo perdida,/ na noite dos tempos idos
[…]”.
Assim como Beatriz habitou a Vita nuova, de Dante (e sua ascensão ao Paraíso deu-se com ela ao lado, na Comedia), Odorico dá as mãos à sua eterna amada Helosine nessa viagem em redor da ilha e do antigamente, dizendo num repente de cantador de viola: “Da memória não me escapa,/ nem me foge das retinas,/ dos velhos becos a imagem/ nesta sentida viagem,/ contido ao meu lado a pé […]”. Que outra, senão ela, sua interlocutora privi legiada durante (e para além de toda a vida), acompanhá-lo-ia nessa aventura poética?
Distribuídos em estrofes irregulares, como irregulares são os becos e as ruas que pretende evocar, e construídos quase sempre com rimas, os versos estão vazados em registro coloquial, como se o poeta quisesse requestar um maior número de ouvintes do povo que lhe alcançassem a descrição
do passeio mágico em direção do passado glorioso da Ilha.
Conquanto declare o poeta, na invocação inicial do poema, estar em dúvida sobre a fidelidade da descrição pretendida, quase nada de característico do tema visado lhe passou despercebido. A fundação da cidade e o vaticínio de suas benesses do clima ameno e da natureza sempre viçosa; os crepúsculos vespertinos; as fontes públicas; os interiores solarengos; as ruas, praças, becos e quintas senhoriais; a arquitetura característica do casario; as ladeiras e escadarias; os trapiches e suas mercadorias; os ancoradouros fluviais e as praias radiosas; os tipos vários de embarcação; as fábricas de tecidos e seus produtos; a destruição de velhas igrejas e a construção de novas; a figura de Bequimão; as cavilações dos barões imperiais; os frades orantes; as festas de largo e os namoricos; os folguedos populares; as serenatas e as visitas de almas penadas; e os poetas e os prosadores respectivamente com Gonçalves Dias e João Lisboa à frente. Mas, de que vale o progresso de nossos dias, se estão “suas praças, suas ruas,/ hoje transformadas, nuas, do encanto de antigamente?”
Se o sólido casamento não lhe concedeu filhos, Deus concedeu-lhe o privilégio de devolver saúde e vida a milhares de maranhensezinhos. Por isso, os versos desse médico-poeta, que dedicou praticamente toda sua existência às crianças, não poderiam omiti-las. Além da rápida referência ao fascínio das crianças por histórias da carochinha, sita à p. 53, a elas se reporta por mais de uma vez ao longo do cordel que empresta o nome à obra. Numa, de modo explícito e encerrado com uma bela metáfora sinestésica, em que funde tato com audição:
Ia, a fugir, a velha tarde longa…
No fim da rua, bandos de crianças
num célere vai e vem de quem
procura alguma coisa numa
brincadeira sem sentido, sem
rumo, sem propósito. Como se
fossem pássaros à solta,
quebravam, aos gritos, o silêncio
manso… (p. 88-89)
Noutra, de modo implícito e carregado de coliterações e assonâncias expressivas: “Escolares em bandos se juntavam/ nas ruas chilreando como pássaros;/ rumo aos rijos colégios do passado […]” (p. 82). Dedicando praticamente toda sua existência às crianças, os versos desse médico-poeta não poderiam ficar delas despovoados. Nas duas passagens, as crianças são exibidas como pássaros a gorjear para o deleite do ouvido de todas as criaturas de Deus.
Bendita a criação artística que sublima as dores que a vida às vezes nos dá. Bendita a criação artística, que às vezes confere ao poeta o dom de sonhar, e, com isso, permite-lhe a capacidade daquilo que Raul Castagnino chama de função profética da literatura.
Após este breve passeio em torno de um tópico apenas da lírica de Amaral de Mattos – o da saudade –, eis que trago uma contribuição nova para a teoria da literatura e para a semântica da palavra saudade em língua portuguesa. A saudade já não é a mesma, depois do Poema da cidade que era assim, de nosso Amaral de Mattos. Há uma saudade vivida e há uma saudade projetada no futuro. Seu último poema é uma carta lírica intitulada com o próprio vocativo recorrente na obra, “minha querida”, segundo sua eterna amada Helosine, tacitamente dedicada a sua genitora; e começa profeticamente assim:
Se algum dia eu partisse em longa
viagem para longe de ti; por longo
tempo, o que bem podes crer, jamais
seria possível, mas, se eu partisse e
um certo dia, já cansado de tanto estar
distante, em sonho eu te escrevesse,
escuta o que, por certo, então eu te
diria […]
E sempre nesse tom confessional, como um segrel medievo a cantar ao ouvido da “sua senhor”, fala do encontro vespertino, do encontro noturno e do encontro matinal, para encerrar assim o poema e o livro dedicado àquela pessoa que tanto amou:
Asas, canções, perfume unem-se em largo abraço
e, atônito, percebo, pela vez primeira,
que és tal como as manhãs de sol, minha querida,
– um bem do céu, um bem da terra, um bem da vida,
canto de sabiás, luz de ouro da alvorada,
envolvendo a amplidão num longo e imenso afago
que vai da serrania ao mar, do vale ao lago,
a iluminar meus passos pela velha estrada da vida…
Não está em causa um juízo de valor sobre o teor da epístola em versos, mas tão somente suas ideias. O amor do poeta, que soube plenificar de vida as criancinhas desfalecidas cujas mães lhas traziam em busca de cura, acreditava piamente, como acreditou o conceitualista espanhol Francisco de Quevedo no século17, que existe, sim, um amor verdadeiro, que sobrevive além da própria morte.
E o que fez Helosine?
Ela recolheu “as rosas da vida” do célebre soneto de Ronsard nos versos que lhe dedicou o apaixonado e eterno amante. Ela os colheu, e nos deu de presente com as lúcidas bênçãos prefaciais e judicativas do padre, artista da palavra e humanista como poucos, João Miguel Mohana. Os versos de Amaral de Mattos cantam a vida e o amor, evocam a saudade e a infância, mas, principalmente, exaltam a São Luís dos tempos que não voltam mais.
Artur Azevedo e Amaral de Mattos são dois poetas maranhenses de cunho eminentemente popular, que produziram em épocas e lugares distintos sua curta bagagem poética. Aquele, mais voltado para a sátira; este, mais voltado para a lírica. Aquele, mourejando no jornalismo e no teatro carioca, sempre à espera de voltar um dia à terra natal, para rever familiares e amigos que aqui ficaram, degustar as comidas típicas da infância e da juventude; enfim, e em vão, para exibir vitorioso seus primeiros cabelos brancos às belas da praça João Lisboa. Este último vivendo tão plenamente quanto possível sua vida de mestre e pediatra. Dedicando praticamente toda sua existência às crianças, em São Luís, mas saudoso dos tempos idos e vividos. Reconciliado, na idade provecta, com as musas da juventude, sofrendo a nostalgia do passado “de céus doirados, ao nascer do sol,/ de árvores verdes, gotejando orvalho,/ de flores nos quintais, galos cantando/ na mais singela saudação do dia” (p. 83). Um e outro, grandes maranhenses que viveram sua fé e procuraram fazer o mundo à sua volta muito mais poético do que aquele que encontraram um dia.
Esta fala se quedaria inconclusa, se eu não lhes dissesse de um outro ilustre maranhense que dignificou com sua fé e seu gênio a Cadeira para a qual apenas trago meu meio século vivido na função modesta de mestre-escola.
Falo de alguém que não fez versos. Principalmente para mitigar sua catarse e registrar sua paixão pela mulher amada, como Odorico. Nem de alguém que passou a vida a levar aos lares principalmente o lenitivo do riso, como Artur. Falo de alguém que viveu intensamente sua rica existência a tentar construir o homem integral; a tentar solidificar os laços matrimoniais de casais desencontrados; a tentar ajudar os pais cristãos a educarem filhos sadios no corpo e na mente; a tentar mostrar aos homens e mulheres de sua geração que a felicidade é um bem que se constrói, dia a dia, com muito amor e desprendimento das coisas vãs. Falo de João Miguel Mohana.
Não tive o privilégio de privar, direta e demoradamente, da amizade próxima de Mohana. Tangido pela necessidade de manter a numerosa família com que Deus desejou premiar meu amor com Jovita, mudamo-nos para a cidade do Rio de Janeiro, em março de 64. João Mohana já havia feito sua opção pela cura das almas, em prosseguimento à sua rápida, mas competente, experiência de médico pediatra. À altura, eu já lhe conhecia os dois romances, porém não lera ainda sua meia dúzia de dramas, cheios de teatralidade à la grega, e, como não poderia deixar de ser, de religiosidade. Aqueles e estes, Mohana os escreveu com os olhos voltados para o deleite estético e o crescimento ético dos seus muitos leitores, porque o fez com o coração pulsando no ritmo de Deus.
Embora os versos, tão cultivados em qualquer época pelos conterrâneos de todos os estratos sociais, não tenham ocupado o centro de sua produção literária, quanta poesia emana de obras suas. Falo de obras como O mundo e eu e Sofrer e amar. É que Mohana, como no milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, não escrevia preocupado com sua própria promoção. Fazia-o na certeza de que suas obras concorreriam, como concorreram, para fazer de nosso mundo um admirável mundo novo, e muito melhor do que o velho.
A expressão aqui usada, alusiva ao conhecido romance de Aldous Huxley, não é uma simples figura de retórica. Entre a quase dezena de obras de Mohana em torno da felicidade conjugal e da educação da prole, está presente o pedagogo, o pediatra, o psiquiatra, mas principalmente o homem integral cristão que ele foi. Mas sua pedagogia não se limita aos casais e aos filhos desses casais. Também se volta, em uma quase meia dezena de livros, para o sucesso profissional de sacerdotes e de leigos. Em todos eles, a preocupação com a estrutura do homem íntegro e cristão, premissa necessária para a construção desse mundo menos desigual que nos cerca.
De tal forma esteve Mohana impregnado da graça e da importância de seu ministério apostólico, que suas obras sobre a espiritualidade cristã católica, propriamente dita, ascende a quase duas dezenas de títulos. Uma prova irrefutável do prestígio que essas suas obras paraliterárias (e não as literárias propriamente ditas, como os romances e os dramas) vêm experimentando junto ao grande público brasileiro – é o elevado número de edições promovidas principalmente pela editora Loyola até nossos dias. Como no célebre passo de Rui Barbosa, não plantou ele apenas pés de couve com que saciasse a fome no prato do dia seguinte; mas plantou carvalhos, para darem sombra aos peregrinos dos futuros dias, por muito tempo afora.
Por tudo isso, meus senhores e senhoras, embora não se tivesse ele ocupado em escrever versos, Mohana foi um poeta maior dentre os maiores de seu país e de seu tempo, como Deus é o poeta maior do universo de todos os tempos. Uso aqui o termo poeta com o sentido de criador, aquele que tira algo do nada, como no antigo grego poiesis. Nesse sentido, poeta é tanto aquele que molda a argila e esculpe as figuras do mundo, como aquele que usa as cores da natureza para pintar as coisas belas da vida; ou ainda aquele que ordena sintaticamente as notas musicais de uma canção para o deleite de todos.
Poeta, sim, foi Mohana. Ele alcançou em plenitude sua própria felicidade, procurando solidificar a paz e a felicidade de seu irmão próximo e de seu irmão distante. Ao irmão próximo: os cristãos para os quais pregou em vários estados brasileiros e alguns países latinos; aos casais a quem aconselhava; aos pecadores, cujas fraquezas escutava em sua missão sacerdotal, e a quem perdoava em nome de Deus; aos excluídos de toda sorte que lhe batiam à porta e a quem acudia com sua bondade. A mesma sarça ardente de sua palavra de fogo, pronunciada na condenação das injustiças de toda ordem, transformava-a em pétalas de rosa, no sussurro dos aconselhamentos oferecidos e procurados. E também ao irmão distante. Na impossibilidade de estar presente in persona em vários lugares, como santo Antônio, Mohana perenizou (esta é a expressão com seu real sentido etimológico), perenizou sua palavra apostólica nas obras que editou, nos discos que gravou e nas entrevistas que concedeu na mídia.
Meus Senhores e minhas senhoras, para concluir, confesso-lhes que este é um dos dias mais felizes de minha vida. Assento-me enfim na mesma Cadeira em que já se assentaram os acadêmicos Antônio da Costa Gomes, seu irmão João da Costa Gomes, Francisco de Assis Garrido, João Miguel Mohana e Odorico Carmelito Amaral de Mattos. A seu modo, cada um deles, com sua criatividade e talento, concorreu para o engrandecimento do nome desta Casa. Consciente da importância que todos tiveram na história de nossa cultura, estou certo de que não irei substituir a nenhum deles, mas simplesmente suceder ao derradeiro ocupante.
Neste mundo globalizado, em que os avanços da ciência e da técnica derrubam fronteiras e aproximam os homens dos mais distantes lugares, não importa que eu tenha residência e domicílio fora de São Luís. Aqui retorno frequentemente com Jovita para estarmos com a nossa primogênita Norma Sueli, e três netos que aqui residem – Adriane, Andréa e Rafael. Com as bênçãos de Deus, até dezembro aqui nascerá Vitor, nosso primeiro netinho maranhense, filho de Adriana. Nos restantes anos de vida que Deus me conceder, procurarei estar à altura da memória de todos eles e concorrer, com a parcela que me cabe, para que o Maranhão continue a gozar, no conceito dos demais estados da Federação, do elevado conceito de que até hoje goza.
Muito obrigado pela atenção de todos.
Tenho dito.
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